Um
Problema Central na Controvérsia Puritana
por
Ian Murray
Em 1522
na Manor House de Sodbury, em Gloucestershire, William Tyndale estabeleceu o
princípio fundamental do Protestantismo Inglês quando confrontou os
eclesiásticos que se reuniram ao redor da mesa de jantar de Sir John Walsh com
aquilo que John Foxe chama de “A Escritura Aberta e Manifesta”. Quatro anos
depois o mesmo princípio passou a ser aplicado para impregnar ou levedar a nação
inteira com a chegada secreta dos primeiros exemplares do Novo Testamento
impressos em Inglês, vindos de Flanders. Seu tradutor, Tyndale, já então um
exilado procurado pela lei, justificou sua ação ilegal nos seguintes termos:
“Percebi por experiência própria que é impossível firmar as pessoas leigas em
qualquer verdade, a menos que pelas Escrituras claramente abertas aos seus olhos
(...). Deus estabeleceu uma regra nas Escrituras, sem a qual nada se pode fazer,
nem mesmo mover um fio de cabelo, sem ser abominável aos olhos de
Deus.”[1]
Pagando o
alto preço de grande sofrimento o Protestantismo se estabeleceu na Grã Bretanha
país, não devido a grandes estatísticas ao conhecimento de seus aderentes, mas
porque através das Escrituras rios de vida espiritual fluíram, de modo que ao
invés dos ensinamentos e tradições de uma igreja corrupta, homens e mulheres
estavam ouvindo as palavras do Deus vivo. Quando um amigo de Tyndale, John
Rogers, foi julgado e condenado ao martírio, um dos seus juizes católicos
declarou: “você nada pode provar pelas Escrituras: As Escrituras estão mortas e
requerem eloquência de exposição”. Ao que Rogers exclamou: “Não, não, as
Escrituras estão vivas”.
É esta
convicção que explica porque os cristãos nos começos da Reforma agüentaram
perseguições e persistiram tanto em traduzir e divulgar a Bíblia: Eles sabiam
que só nelas estão as palavras da vida eterna e que o homem só pode viver na
medida em que recebe cada palavra que procede da boca de Deus.
As
Escrituras são a voz de Deus, e se somos ou não o objeto das bênçãos ou
maldições de Deus pode ser experimentalmente determinado ao verificarmos se nós
obedecemos e reverenciamos o que está escrito nas Escrituras ou não. Estar sem
as Escrituras é estar sem Deus e sem esperança no mundo. Além disto, as
Escrituras são o único e infalível registro que temos da vontade de Cristo.
Antes da Reforma os ingleses não tinham qualquer meio de afirmar se algo teria
ou não a aprovação de Cristo, porque, como escreveu John Hooper em 1547, “ele
que havia buscado em todas as igrejas da Inglaterra antes dos dezesseis anos,
não teria encontrado uma única Bíblia.” Foi somente quando as Escrituras foram
re-abertas que o Anti-Cristo, o qual havia até então se mantido sob o disfarce
do “o melhor cristão”, foi descoberto em possessão da Igreja. E quando esta
Igreja apóstata mostrou sua ira contra seus assim chamados Reformadores, aqueles
que sofreram pela sua fé nas Escrituras não tiveram dúvida de que estavam dando
as suas vidas pela causa do Senhor Jesus Cristo.
A questão
da autoridade da Bíblia levantada no começo da Reforma Inglesa não estava firme
de imediato. Nem quando havia apenas uma aceitação formal do Protestantismo, no
reinado de Eduardo VI (1547-1553), nem estava firme depois do terror de Maria a
“Sanguinária”, pelo Ato de Uniformidade de Elizabeth em 1559. Mais
apropriadamente, o reinado de Elizabeth presenciou o emergir do movimento
Puritano dentro do Protestantismo, e a força motriz desse movimento era a
convicção de que a completa autoridade da Palavra de Deus ainda não havia sido
aceita pela Igreja Inglesa.
A luta
que se seguiu nos próximos cem anos não foi uma simples tentativa Puritana para
assegurar alterações em vestimentas clericais, ou cerimônias religiosas ou
aspectos externos da ordem da igreja, mas foi muito além disso. Os Puritanos
reivindicaram que as Escrituras não são apenas a completa revelação do Evangelho
de Cristo mas que elas contém todas as informações necessárias para o governo e
adoração em Sua Igreja. Eles acreditavam que esse era um princípio fundamental:
assim como nenhum ensinamento espiritual pode ser aceito a menos que seja
encontrado nas Escrituras, também nenhum significado espiritual pode ser
adicionado à Igreja além daquele que está autorizado pela Palavra Escrita. Este
princípio – O Princípio Regulador das Escrituras, como foi chamado
posteriormente – ele assegurava estar preso ao ensinamento contido na Bíblia a
respeito de sua própria autoridade. Com base nesse princípio, eles estabeleceram
sua política de Reforma da igreja em duas proposições principais:
•
Qualquer coisa introduzida na Igreja sem sanção escriturística é
ilegal.
• A forma
da Igreja visível no Novo Testamento está permanentemente ligada a todas as
gerações de cristãos.
Contra
essas proposições os defensores da Igreja Elizabetana, notavelmente John
Whitgift (c. 1530-1604) e Richard Hooker (c. 1554-1600), formularam duas
contra-proposições:
• Eles
alegavam que os Puritanos havia entendido mal a intenção das Escrituras: a
Bíblia faz obrigatórios todos os aspectos relacionados à salvação, enquanto
permite liberdade à Igreja para introduzir “coisas indiferentes” (ADIAPHORA é o
termo técnico), isto é, coisas não proibidas pelas Escrituras e que a prudência
cristã entenda como benéfico ao governo e à adoração da Igreja, em certas
circunstâncias.
• Eles
negavam que o padrão da Igreja do Novo Testamento fosse permanentemente
obrigatório posto que a informação dada pelas Escrituras nesse assunto não é
suficiente, como os Puritanos reivindicavam, mas incompleta e não decisiva,
sugerindo que Cristo não intencionou que qualquer forma de governo na Igreja
fosse de autoridade Divina.
OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
Antes de
voltarmos nossa atenção para o que está envolvido nessas conflitantes afirmações
farei alguns comentários preliminares:
1. O
ensino Puritano do Princípio Regulador das Escrituras, na Inglaterra, é quase
tão obsoleto quanto o ensino de que o planeta Terra é achatado. Desde os últimos
quarenta anos do século XVII quando a idéia de governo da Igreja por “direito
divino” foi rejeitado com desdém, desprezada e excluída de julgamento,
evangélicos e não evangélicos concordavam em considerar a posição Puritana como
simplória e intangível. As únicas pessoas que o recente Relatório
Metodista-Anglicano relacionou como os que apoiam a idéia de que “A Igreja só
pode fazer aquilo que está explicitamente afirmado e comandado pelas Sagradas
Escrituras” são os Radicais da Reforma, Anabatistas e Puritanos do século XVII.
[2] Tudo o que precisamos dizer aqui, a respeito dessa atitude, é que ela não se
baseia em qualquer refutação da posição Puritana. O que John Owen escreveu a
Samuel Parker em 1669 continua verdadeiro. Parker, um firme defensor do Ato de
Uniformidade de 1662, atacou o Princípio Regulador como “o alicerce de todo
Puritanismo”, mas em resposta a seus argumentos, Owen declarou que Parker “não
utilizou nenhum artifício que já não tenha sido utilizado mais de uma centena de
vezes contra essa questão, todos mal secedidos”. Owen cita o argumento principal
de Parker: “Aquilo que as Escrituras não proíbem, elas permitem; e o que
permitem não é ilegal; e o que não é ilegal pode ser feito legalmente. Essa
mentira, eu confesso, tem-nos sido dita muitas e muitas vezes” diz Owen, “mas
ela já foi tantas vezes respondida que, por uma simples questão de raciocínio,
pode se ver que é no seu todo, capciosa e sofismática”.[3] Mesmo depois de três
séculos de retórica, se a questão do Culto Puritano na Igreja fosse reaberta,
encontraríamos justificativa para a abordagem de Owen.
2. À
primeira vista, pode parecer que o ensino Puritano nessa questão não tem
relevância quanto a nossa situação contemporânea. Alguém poderia afirmar, “Qual
o sentido de discutirmos a extensão da autoridade das Escrituras quando o que
está sendo realmente questionado hoje é se a Bíblia tem qualquer autoridade
afinal?”. A resposta Puritana a essa questão seria, que a abordagem sugere
implicitamente o homem como centro: a rejeição da inerrância da Bíblia pelo
mundo moderno é um problema para os evangélicos, mas há um problema mais
profundo, isto é, “porque os favores de Deus já não se manifestam mais em nossas
igrejas?”. À luz dessa questão não será irrelevante perguntar: “Até que ponto
queria Deus que Sua Palavra fosse nossa única guia e regra? Estariam as
Escrituras regulando a vida de nossas Igrejas, hoje, na amplitude almejada por
Cristo?”. Não é impossível que nós estejamos tão preocupados em defender as
Escrituras que não estejamos tendo suficientemente temor quanto à nossa própria
falha na obediência da Palavra. A primeira dedução Puritana, partindo da sua
crença de que as Escrituras são a voz de Deus, era que cada um é pessoalmente
responsável ante Deus com respeito a tudo aquilo contido em Sua Palavra.
“Enquanto temos a Palavra de Cristo para as coisas que devemos fazer ou recusar
a fazer”, diz Henry Barrow, “não precisamos temer as ameaças de homens vãos e
orgulhos; nem estarmos impressionados ante títulos e nomes de igrejas,
sacramentos, etc. pois uma coisa é certa, não há igreja que possa nos desculpar
pela quebra da Lei de Deus perante o grande Juiz”.[4] Nós não resgataremos o
sentido dessa citação até reexaminarmos nossa visão geral das Escrituras. Um
estudo renovado do Princípio Regulador no tempo atual não seria uma excursão
teológica embolorada e azeda com problemas de uma era passada; na realidade,
isto nos levaria a um confronto com o teste que a nossa cristandade moderna
necessita, e levaria nossas mentes adiante, até aquele dia em que todos os atos
praticados, através do nosso corpo, serão julgados pela regra ditada nas
Escrituras: “A nossa total pregação deve passar pela prova das Escrituras” diz
Thomas Brooks, “ou nós e nossos atos devemos ser queimados juntos”. Os Puritanos
nos mostram quão grande responsabilidade pessoal deve se seguir e advir da
convicção na infalibilidade das Escrituras.
3. Outra
razão pela qual esse assunto é relevante para nós é que nos força a considerar a
linha divisória entre uma prática legal de expediência e um compromisso com o
pecado; ou seja, qual é o ponto onde as Escrituras deixam de ser nosso único
guia e passamos a definir novas formas e métodos, de acordo com as
circunstâncias em que nos achamos? Estamos entrando numa era em que as tradições
das igrejas estão sucumbindo, e experiências estão, cada dia mais, sendo
praticados no evangelismo, na adoração e nas formas de governo das
igrejas.
Novas
experiências em música, drama religioso, técnicas audio-visuais, têm sido
praticadas e algumas igrejas têm chegado ao ponto de substituir o sermão de
domingo por filmes. A questão fundamental é, ATÉ QUE PONTO AS ESCRITURAS
PERMITEM TAIS COISAS? Não há desacordo quando ao fato de que o exercício da
prudência, sabedoria e bom senso são responsabilidades dos cristãos; o desacordo
entre nós e os Puritanos é que temos agido como se houvesse uma ampla área na
prática da Igreja que está fora do escopo do Novo Testamento. Eles traçaram a
linha divisória entre expediência legítima e desobediência em um ponto diferente
daquele em que nós traçamos. Como evangélicos temos sido inclinados a crer que
onde quer que nossas falhas estejam, elas não estão em desobediência às
Escrituras. Mas se o ensinamento Puritano do Princípio Regulador estiver
correto, isto porá a nossa conduta em um outro foco.
postado por:miguel silva (leo_miguelsilva@hotmail.com) |
terça-feira, 10 de julho de 2012
As Escrituras e “As Questões Indiferentes” (parte 1)
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