segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Estadistas, alienados ou carreiristas?


Os evangélicos e o projeto histórico

O povo de Deus deveria ser um povo de estadistas: capaz de uma compreensão correta e de uma participação ética e competente no tratamento da coisa pública. Deveria ter um envolvimento ativo na vida em sociedade, na promoção do bem comum. As desinformações, os preconceitos, os medos, o ódio, a corrupção, a maledicência e os interesses subalternos não deveriam se fazer presentes no meio do povo de Deus, deformando o exercício da sua cidadania, como sinais e evidências sociais do pecado.

Cidadania e Projeto
A crise da cidadania entre os evangélicos — apontam os analistas — decorre da falta de, entre eles, um projeto histórico: de que modo a sua presença alteraria os rumos da nação e do Estado no Brasil? Não está em discussão o projeto espiritual, metafísico ou escatológico — o além e o futuro — mas o aquém e o presente. Não está em discussão a conversão pessoal e o projeto subjetivo e individual de cada crente, mas o obje-tivo e o coletivo. Somos um povo ou apenas uma colagem de indivíduos?

As eleições, especialmente as presidenciais, se constituem num im-portante momento para uma sincera auto-avaliação, caso queiramos crescer.

Tivemos projetos coletivos no Brasil no passado? Sim.

No Segundo Reinado (sob a Constituição de 1824), o projeto político dos evangélicos era o de adquirir a plenitude da cidadania, o exercício pleno dos direitos que nos eram vedados pela lei. Levantamos a bandeira da Separação entre Igreja e Estado, em composição com uma frente que incluía os liberais, os republicanos, os maçons e os livres-pensadores. Esse projeto foi ampliado com a condenação da escravidão e a defesa da República. A Abolição, a República e a Constituição de 1891 tornaram esse projeto vitorioso.

Na Primeira República — apesar de se ter abolido uma religião oficial — sentimos o peso do preconceito social e da discriminação por parte das autoridades. Levantamos a bandeira do Estado laico, e continuamos a disseminar, entre os setores formadores de opinião, a ideologia do progresso e da democracia como decorrências do protestantismo. As escolas e colégios foram os principais veículos pioneiros desse projeto: mistas, profissionalizantes, valoriza-doras dos esportes e da educação física, que influenciaram as reformas educacionais promovidas pelos governos nos anos 20. A emergente classe média se sentia atraída pela proposta.

De 1855 a 1930 tivemos projetos históricos, que foram sendo absorvidos pelo setor público e por outros segmentos sociais, e nos esgotamos como vanguarda, sinalizadora do novo e do melhor para o país.

Durante a Ditadura Vargas (1930-1945) ficamos no discurso de que os países protestantes eram mais progressistas (de escassa ressonância diante da polarização Integralistas versus Comunistas). Na República Populista (1946-64) queríamos apenas um lugar ao sol, ser considerados normais, reconhecidos pelas autoridades (visita de Jucelino à Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, em 1959) ou mostrar que éramos numerosos (enchendo o Maracanã com os batistas e Billy Graham, em 1960).

Apoliticismo e Realismo
Fomos, então, atingidos em cheio pela Guerra Fria, com a polarização entre uma direita e uma esquerda protestantes. A Conferência do Nordeste, da Confederação Evangélica do Brasil (1962, em Recife, PE) e o Manifesto dos Pastores Batistas (1963, em Vitória, ES) foram sinais daquele tempo de fecunda inquietação, diante de um mundo que passava por uma profunda revolução cultural.

Durante a Ditadura Militar (1964-1985) mandamos às favas o nosso compromisso histórico com a democracia e o constitucionalismo, nos aliamos à direita católica romana, perseguindo os dissidentes “corruptos” e “subversivos”. Assim, o fundamentalismo, ora alienante ora adesista, foi imposto como teologia única às denominações, com a assistência “técnica” dos irmãos do Norte. Toda uma geração foi despolitizada.

Com a redemocratização espalhamos a mentira do acordo secreto entre Tancredo Neves e a Igreja Romana, trocamos votos de nossa bancada parlamentar — uma rádio por um ano de mandato. O bem comum já tinha ido para o lixo. Agora era o corporativismo do “bem nosso” mesmo.

A agressividade e a falta de ética marcaram nossa participação nas eleições presidenciais de 1989, quando fomos co-responsáveis pela vitória de um desequilibrado e aético, apresentado nos púlpitos como “um homem de Deus”. Caímos no messianismo da nossa cultura e nas promessas de “um lugar no teu reino...”

Já o trauma da mancada e o impeachment nos permitiram, em 1994, uma eleição mais moderada e civilizada entre os evangélicos, com a maioria das denominações (ao menos formalmente) respeitando o pluralismo no seu interior, embora um setor ainda insistisse no clima da “guerra santa”. Segmentos expressivos, contudo, se encantaram com o charme do príncipe-intelectual (ex-ateu confesso, “convertido” a uma fitinha do Senhor do Bonfim).

Luzes da Pátria?
Esperamos que, para as eleições presidenciais deste ano, tenhamos amadurecido em cultura política e em ética, em conhecimento do nosso legado histórico e em leitura abrangente das Sagradas Escrituras. Que haja um clima de respeito no interior das igrejas e um sentido de crítica e independência fora delas.

O Brasil se encontra sem um projeto nacional. O nacional-desenvolvimentismo, legado por Vargas, está parcialmente esgotado; uma parte — as conquistas sociais — é alvo da destruição dos seus adversários no poder. A subserviência aos donos do poder mundial, a arrogância, o falso discurso, as falências das empresas nacionais, o desemprego, a falta de uma política agrária e agrícola, o desprezo ao servidor público e aos aposentados, a violência, o sucateamento da saúde e da educação públicas são evidentes.

Intelectuais, políticos, artistas, setores organizados da sociedade civil têm elaborado alternativas, que são ignoradas ou ridicularizadas.

Os evangélicos não podem se comportar de modo individualista, insensível e irresponsável, nem podem apenas buscar vantagens pessoais ou para a sua corporação religiosa. O nosso compromisso é com o fomento do reino de Deus, de justiça e paz. E Deus nos colocou neste país com um propósito: salgá-lo e iluminá-lo, conhecendo-o, amando-o, comprometendo-se e identificando-se com ele, portando sua identidade. Conscientes do nosso papel transformador, vamos agir lançando mão da intermediação científica para a compreensão e da intermediação das organizações sociais para a participação.

Inconformados com o presente, profetas do Altíssimo, colaboremos para a elaboração de um projeto alternativo, para darmos novos rumos à pátria terrena que amamos e que os maus brasileiros querem destruir.

Robinson Cavalcanti é bispo da Diocese Anglicana do Recife, PE.

POSTADO: Anderson Queiroz