sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A Escrivaninha de Lutero



Também não seria seguro para a consciência cristã deixar de perceber que vivemos outros tempos, mas a sinceridade de propósitos, em profunda análise de fé, exige novos Luteros, novas reformas


Um amigo está cursando mestrado em História na USP. Por intermédio dele, Octávio Tostes, tomei conhecimento que seu orientador, doutor na matéria, o informou: na Alemanha existe um espaço, também um conceito, chamado Lugar de Memória. Ali está exposto, como faríamos aqui num museu, um móvel singular. Uma escrivaninha. Não é uma peça qualquer de escritório – é exatamente o lugar onde Martim Lutero se debruçou para escrever as famosas 95 teses, que seriam afixadas à porta do castelo de Wittenberg, insurgindo-se contra o mercado das indulgências. Um protesto, ato que daria início à reforma protestante, em 31 de outubro de 1517. Dezessete anos depois, ficaria pronta, nessa mesma escrivaninha, a primeira edição completa da Bíblia em alemão, por ele traduzida.

Protesto, protestantes. Importante saber, neste mês em que comemoramos o Dia da Reforma, que a casa na cidade onde Lutero nasceu – Eisleben, daí o nome oficial ser Lutherstadt Eisleben – é considerada patrimônio da Humanidade desde 1997. Também é importante saber que o povo alemão, que ao longo dos últimos 500 anos nos deu Kant, Hegel, Schopenhauer, Marx, Engels, Nietzsche, Freud, Lukács, Walter Benjamim, Heidegger e Adorno, pensadores que ajudaram muito na compreensão do ser humano, também nos contemplou com Lutero. O historiador francês Pierre Nora criou uma forma, que chamou de “História Presente”, para estudos de objetos da atualidade em que a história ainda estivesse presente – ou seja, resgatar o inventário de lugares, de memória. Esses lugares vão do objeto material e concreto, ao mais abstrato – um lembrete concentrado que “garante ao mesmo tempo a cristalização da lembrança e sua transmissão (...), que caracteriza por um acontecimento ou uma experiência vivida por um pequeno número uma maioria que deles não participou”. O Lugar de Memória marca o lugar onde o simples registro acaba. Ou seja: aquilo que hoje chamamos de memória é na verdade História. A escrivaninha pode ser contemplada (“foi aqui”), porque ali Lutero transformou em palavras pensamentos profundos, como o prefácio à carta de Paulo aos cristãos em Roma. Havia, na ocasião, vendedores de indulgências – ou seja, o perdão dos pecados seria obtido através de pagamentos, o que Lutero considerava um empecilho para o arrependimento de pecadores. Os vendilhões eram ousados. Eram? A repercussão das 95 teses escapou ao controle de Lutero, espalhou-se pela Alemanha. Quiseram queimá-lo vivo. Ele se escondeu no castelo de Wartburg, em Eisenach, graças ao príncipe Frederico, da Saxônia, que o protegeu. É lá que está a escrivaninha. Nossa História precisa ser preservada. Olhemos ao derredor: 1517 não tem semelhanças com 2010? Também não seria seguro para a consciência cristã deixar de perceber que vivemos outros tempos, mas a sinceridade de propósitos, em profunda análise de fé, exige novos Luteros, novas reformas. A Palavra precisa ser mantida intacta. Como disse Lutero, Deus nos ajude.

Percival deSouza
é escritor, jornalista e membro do Conselho Diretor da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista