sábado, 17 de outubro de 2009

Os Puritanos: Origens e Sucessores - Brochur


Livro : Os Puritanos: Origens e Sucessores - Brochura  / Autor : D. M. Lloyd-Jones  / Categoria : História  / Editora : Pes


Detalhes de Os Puritanos: Origens e Sucessores - Brochura

A fé cristã e a vida da Igreja estão ambas arraigadas nos eventos da história. Não é surpreendente, portanto, que um líder cristão tão notável como o D. Martyn Lloyd-Jones acreditava que um conhecimento da história é vital para o bem-estar da Igreja. Ele reconheceu que fé num Senhor encarnado, crucificado e ressurreto, torna impossível para nós participarmos do pessimismo dum Voltaire, o qual disse: "A história nada mais é que um relatório de crimes e infortúnios", como também do cinicismo dum Hegel que afirmou: "As pessoas jamais aprenderam coisa alguma da história nem agiram baseados nos princípios provenientes dela".

Todavia, o que é espantoso é o conhecimento da história que este livro evidencia, ao reunir, pela primeira vez, as palestras proferidas pelo Dr. Lloyd-Jones nas Conferências Puritana e Westminster entre 1959 e 1978. Ele extrai lições não somente de homens como Calvino e Knox, Bunyan e Owen, Edwards e Whitefield, porém também de pessoas relativamente obscuras como Henry Jacob, John Glas e Robert Sandeman.

Os Puritanos: Suas Origens e Seus Sucessores é indubitavelmente uma "boa leitura" e será largamente desfrutado e apreciado. Mas o seu valor principal não reside na natureza intrigante do seu estilo, nem certamente numa ótica romântica do passado (contra a qual o Dr. Lloyd-Jones freqüentemente fez advertência).

Ao invés disso, observa J. I. Packer, estes estudos são de valor prático porque os puritanos são abordados com três perguntas importantes em mente:

O que foi que eles ensinaram e fizeram?

Foi bíblico o seu ensino?

O que poderíamos aprender deles para nossa vida e testemunho hoje?

Ninguém sabia melhor do que o Dr. Lloyd-Jones como extrair lições da história. Por essa razão estas páginas não somente refutam o axioma do filósofo Hegel, porém, mais importante, falam com relevância e percepção à Igreja no fim do século XX e na atualidade.

Conheça outras obras de D. M. Lloyd-Jones

Miguel Silva

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O Sínodo de Dort

por

John R. de Witt


Os cristãos, em todas as partes do mundo, estão celebrando este ano [1995] o 350º aniversário da convocação do Sínodo de Dort. Para a maioria das pessoas o nome nem é mesmo familiar, talvez por ter alguma relação com o rio Maas e a provinciana cidade holandesa de Dort. Na mente daqueles que já o ouviram, muito freqüentemente o que restou é algo do ódio há tanto relacionado com o Sínodo, em razão das calúnias de seus inimigos. Não obstante, quando a Reforma era ainda jovem e os homens amavam ardentemente as doutrinas da graça, o nome de Dort era famoso em todo o mundo protestante. William Cunningham vai longe em dizer: “O Sínodo de Dort, representando quase todas as igrejas reformadas, e contendo uma grande proporção dos teólogos do mais alto nível, erudição e caráter, tem direito a maior medida de respeito e deferência do que qualquer outro concílio registrado na história da Igreja” [Os Reformadores e a Teologia da Reforma, p. 367]. Isto é de fato um grande elogio! Mas há muitos grandes nomes na história que em algum tempo significaram muito, mas que agora não têm nenhum significado prático. Então, alguém poderia perguntar por que deveríamos estar preocupados com uma assembléia eclesiástica esquecida pela maioria dos homens há tanto tempo, e que, à primeira vista, parece não ter qualquer significado contemporâneo?

Em primeiro lugar o Sínodo de Dort é de peculiar interesse histórico para a Grã-Bretanha, pois – embora fosse principalmente um ajuntamento holandês – o rei James I foi, na verdade, responsável em parte por sua existência! Nos anos anteriores a 1618-19 ele somou sua forte influência a dos homens na Holanda que clamavam pela convocação de um Sínodo nacional, para pôr fim às controvérsias teológicas que estavam perturbando a paz, e mesmo pondo em risco a sobrevivência dos Paises Baixos. Ainda mais, James escolheu vigorosamente os representantes calvinistas contra os oponentes arminianos. E, quando um tal Vortius, homem justamente suspeito como de opinião sociniana [unitarino], foi indicado para susbstituir Arminius na Universidade de Leiden, após sua morte, James notificou ao Estado Geral da Holanda que retiraria seu embaixador se Vortius não fosse demitido imediatamente. O Eleitor do Palatinado era genro de James e acrescentou sua própria influência à do rei inglês no clamor por um Sínodo. Quando chegou o momento, James indicou cinco representantes para o Sínodo, todos do partido episcopal, que, juntamente com outros teólogos estrangeiros, teriam prerrogativas de participação nas deliberações do Sínodo além do direito de voto. Eram eles George Carleton, então bispo de Llandaff e posteriormente de Chichester; Joseph Hall, posterior e sucessivamente bispo de Exeter e Norwich; John Davenant, depois bispo de Salisbury; Samuel Ward, o celebrado erudito e mestre de Sidney Sussex College, Cambridge; e Walter Balcahqual, um escocês, capelão do rei e depois deão de Rochester. Hall adoeceu após alguns dias e ficou impossibilitado de dar continuidade às suas responsabilidades, mas foi substituído por Thomas Goad, capelão do arcebispo da Cantuária. É importante lembrar que estes homens não eram representantes do partido puritano da Igreja da Inglaterra. O fato de que o bispo Carleton estar preparado para participar como membro ordinário [embora respeita] de um Sínodo convocado nos moldes da reforma e presidido por um mero presbítero, diz muito sobre a posição do governo episcopal que prevalecia na Inglaterra, um aspecto que seria em breve alterado radicalmente pela influência de homens como William Laud com suas enfatuadas noções não-protestantes do direito divino do episcopado. Também é significativo que todos estes ingleses, um prelado e dois futuros prelados assinaram os Cânones do Sínodo de Dort. Era de se esperar tal profissão de calvinismo dos herdeiros de Cartwright e Perkins; todos sabem que eles faziam coro com seus companheiros do continente. Mas aqueles clérigos, insuspeitos de puritanismo, são prova suficiente de que o calvinismo continuava a ser a teologia predominante na Igreja da Inglaterra durante o reinado de James I. Foi apenas sob o domínio de seu filho Charles I que começou a triste decadência no fervor, e que mais tarde trouxe conseqüências trágicas.

O Sínodo de Dort é também de grande importância por razões religiosas. “A controvérsia arminiana”, escreveu Philip Schaff, “é a mais importante que ocorreu dentro da Igreja Reformada”. Pode-se acrescentar que o sínodo que pôs fim à controvérsia, definiu claramente assuntos que sempre perturbaram a Igreja e continuam a perturbá-la ainda hoje. Para entender-se o que ocorreu nos Paises Baixos, nas duas primeiras décadas do século dezessete, é necessário retroceder até o próprio Arminius e à origem da luta associada ao seu nome. James Arminius [latinizado de Jacob Hermanson] nasceu em 1560 e estudou em Leiden e Genebra na gestão de Teodoro Beza, sucessor de Calvino. Em 1588 tornou-se um dos ministros de Amsterdam, onde realmente começou o problema por causa da sua pregação relacionada particularmente com a exposição de Romanos 7. Os homens suspeitaram que ele estava saindo da confissão reformada, e houve considerável agitação na cidade por causa disso. Em 1630 foi indicado como professor de teologia em Leiden, em substituição ao célebre Franciscus Gomarus, um dos grandes teólogos da época, e assim ficou claro que Arminius tinha sérias objeções contra a doutrina da Igreja. Entretanto, agora, como antes em Amsterdam, mesmo tendo jurado não contradizer em seus ensinamentos a Confissão e aderir completamente a ela em suas lições públicas, dava, todavia, instrução em particular a certos estudantes selecionados, falando mais livremente de suas insatisfações e dúvidas. Seu sucesso em fazer prevalecer sobre os jovens seu próprio ponto de vista cedo tornou-se evidente quando estes se apresentaram ao exame dos Presbitérios para admissão no ministério.

Arminius morreu em 1609 em meio à controvérsia, mas seu manto logo foi tomado por Johannes Uytenbogaert, o pregador da corte, e Simon Episcopus, seu sucessor na universidade. Sob a liderança deles os arminianos, em 1610, prepararam uma representação (Remonstrance) [desde então passaram a ser chamados de os remonstrantes] na qual em princípio rejeitavam certas posições defendidas pelos calvinistas. Esta representação era formulada de tal maneira que oferecia mais uma caricatura do que uma representação correta da doutrina reformada; e prosseguiam asseverando em cinco posições [os cinco artigos do arminianismo] seus próprios pontos de vista; i.é, eleição condicional à presciência da fé; expiação universal [que Cristo “morreu por todos e por cada um, de forma que ele concedeu reconciliação e perdão de pecados a todos através da morte na cruz”]; a necessidade de regeneração para que o homem seja salvo [mas, como apareceu mais tarde, entendido de tal maneira que subestimava seriamente a depravação da natureza humana]; a resistibilidade da graça [“mas quanto ao modo desta graça, ela não é irresistível”]; e a incerteza da perseverança dos crentes. Os calvinistas responderam com a contra-remonstrance [desde então o nome contra-remonstrantes] com sete artigos reafirmando o ensinamento das confissões reformadas com respeito à doutrina da graça. A conferência teve lugar em Hague em 1611, mas não chegou a nenhuma acordo.

Os anos seguintes testemunharam a exacerbação da controvérsia, que agora se espalhava velozmente pelo país e era marcada pela demanda crescente, da parte dos calvinistas, da convocação de um sínodo geral para pôr fim à disputa. Embora a Constituição da Igreja determinasse um Sínodo, no mínimo a cada três anos, nenhum havia sido permitido desde 1586. John Van Olden Barneveldt, Grande Pensionário da Holanda e o grande homem do momento, apoiava os arminianos e era de posicionamento erastiano quanto à relação entre Igreja e o Estado. Em seu ponto de vista e dos remonstrantes, que derivavam suas forças de autoridades políticas, o magistrado civil exercia autoridade em assuntos eclesiásticos. O príncipe Mauricio, filho de William, o Taciturno, e stadtholder hereditário, permaneceu neutro até 1616, quando começou abertamente a tomar o partido dos calvinistas e, nos idos do verão de 1617, estava participando publicamente do culto com a congregação reformada da capital. No mesmo ano, executou um bem sucedido golpe de estado contra Barneveldt e determinou, finalmente, a convocação de um sínodo da igreja holandesa. Este entretanto foi um sínodo único na história do protestantismo pois, pela pressão de James I, teólogos estrangeiros foram convidados a participar. Convites foram enviados para todas as igrejas reformadas da Europa, e realmente vieram delegados da Inglaterra, do Palatinado, Hesse, Zurich, Berne, Basel, Schaffhausen, Genebra, Bremen e Emden. A França não se fez representar. Os representantes designados, Pierre du Moulin e André Rivet, dois dos teólogos mais célebres da época, foram proibidos de deixar o país pelo rei da França. Mas assim mesmo, a Igreja reformada francesa aprovou os Cânones de Dort e fê-los obrigatórios aos seus ministros em dois sínodos gerais separados em 1620 e também em 1623. Nem a Escócia foi incluída – muito estranho, desde que a igreja de John Knox pertencia ao grupo reformado internacional. Mas, deve-se lembrar que o mesmo rei que indicou os episcopais ingleses que participaram do Sínodo de Dort, estava, nestes mesmos anos, engajado em submeter a igreja do norte, do seu reino, a um jugo hierárquico completamente desprezível e indesejável; por isso a igreja escocesa não ficou livre para participar.

Foi uma extraordinária assembléia. Um antigo escritor disse dela o seguinte: “os membros deste sínodo formavam uma constelação dos melhores e mais eruditos teólogos que já se congregaram num concílio desde a dispersão dos apóstolos; salvo se excetuarmos a convocação imperial de Nicéia no quarto século” [Biographia Evangélica II, p. 456]. O concílio incluía 56 ministros e presbíteros regentes das igrejas holandesas, 5 professores de teologia e 26 teólogos estrangeiros, além de 18 comissários políticos [não-membros do sínodo] que iriam supervisionar o processo e dar informações ao Estado Geral. Para se avaliar o peso da assembléia, basta citarem-se alguns nomes. Gomarus estava lá, sucessivamente professor em Leiden, Saumur e agora em Groningen; Lubbertus, de Franeker; Bogerman, o grande ministro de Leeuwaarden que estudou em diversas universidades continentais e então em Oxford e Cambridge [sob Reynolds e Perkins]; Diodati, o italiano que ensinava em Genebra; o jovem Voetius, que não havia ainda iniciado a estupenda carreira acadêmica que o faria, talvez, o mais influente teólogo da Europa; e Scultetus, Polyander, Lydius, Alting, Hommius, Triglandius, Meyer. Podia-se prosseguir referindo-se mais e mais nomes. Interessante é que o grande puritano William Ames, que por causa de seus princípios fora constrangido a fugir da Inglaterra, foi designado por Bogerman, presidente do sínodo, como seu secretário particular, para grande descontentamento dos delegados ingleses. Ames exerceria considerável influência nos bastidores.

O Sínodo começou em 13 de novembro, com culto solene em holandês na Grande Igreja e em francês naquela que fora antes a igreja dos agostinianos. Após o que, ocorreram as sessões, 154 ao todo, no Kloveniersdoelen, uma espécie de armazém arsenal que era aquecido durante todo o inverno por uma grande lareira. Mas, como proteção extra contra o frio e a umidade de que muitos se queixavam, cada delegado recebeu um stoofje, um pequeno braseiro para ser colocado sob os pés. O principal assunto em pauta era, é claro, a controvérsia arminiana, e treze dos remonstrantes foram convocados diante do Sínodo para prestarem contas de suas opiniões. Após alguma demora chegaram finalmente em 6 de dezembro, e até 14 de janeiro o Sínodo engajou-se na vã tentativa de extrair deles uma declaração clara de seus ensinamentos. Os arminianos – Episcopus à frente deles como presidente de uma espécie de contra-sínodo – utilizaram de toda engenhosidade para evitarem qualquer declaração deste tipo, exigiram que fosse seguida sua própria pauta de assuntos em lugar da do Sínodo, praticaram evasivas, táticas de retardamento e obstruções, caluniaram o Estado Geral implicando até mesmo o próprio príncipe Mauricio, e rejeitaram a autoridade do Sínodo em julgá-los; isto a despeito do fato de ser legalmente um Sínodo da Igreja em que ocupavam cargos, à qual confessavam pertencer, e a cuja disciplina estavam obrigados a se submeter em virtude de suas ordenanças e votos!

Após um mês de esforços infrutíferos para se prosseguir com o assunto em pauta, tempo durante o qual Bogerman, o presidente, se conduziu com tal paciência e calma contida, que alguns dos seus colegas a achavam excessiva, em face à tamanha obstinação; não houve alternativa senão despedir Episcopus e seus companheiros. Os historiadores acusam Bogerman por sua conduta no dia fatídico de 14 de janeiro, quando por um momento pareceu ter perdido o auto-controle, mas sua exasperação é compreensível. Referindo-se às distorções deliberadas, e até mesmo falsidades com que os arminianos trataram o Sínodo, ele vociferou: “Vocês estão sendo mandados embora. Vão! Começaram com mentiras e terminaram com mentiras”. E uma vez mais gritou: “Ide! Ide!”. Após este fato o trabalho prosseguiu, fazendo uso, agora, dos escritos e não dos próprios remonstrantes, e o Sínodo formulou em cinco capítulos e noventa e três artigos, os famosos Cânones de Dort, que foram assinados por todos os delegados em 23 de abril e promulgados solenemente na Grande Igreja em 6 de maio de 1619, diante de numerosa congregação. Três dias mais tarde, após seis meses de trabalho exaustivo, os teólogos estrangeiros partiram e os teólogos holandeses permaneceram para 22 sessões adicionais devotadas, em sua maioria, à preparação de uma nova liturgia e ordem eclesiásticas.

Falou-se muito sobre o “perseguidor sínodo de Dort” e houve muita distorção propositada quanto a ele. Por isso, é que na Inglaterra uma versão dos Cânones permaneceu amplamente em voga até 1804, versão esta que tinha o peculiar pedigree de ter sido produzida por um tal de Daniel Tilenus, que era na verdade um remonstrante. Esta versão que corria como uma “sinopse conveniente” era na verdade uma corrupção deliberada dos Cânones. Afirma, por exemplo, que Deus elegeu para salvação “um pequeno número de homens” e predestinou o resto para condenação “sem qualquer consideração quanto à infidelidade e impiedade deles”. Isto era simplesmente uma reprodução da caricatura arminiana original da posição calvinista na Remonstrance de 1610. Os Cânones não fazem na verdade tal afirmação quanto à pequenez do número dos eleitos, exceto para rejeitar a acusação arminiana, para efeito de conclusão, e insiste em estabelecer a conexão entre o decreto da reprovação e o fato do pecado e desobediência do homem: quanto aos preteridos, “Deus (...) decretou deixá-los na miséria comum na qual eles mesmos se precipitaram intencionalmente (...) não apenas por causa de sua descrença, mas também por todos seus outros pecados” [I.7,15].

Quanto à perseguição, deveria ser lembrado que a Igreja Holandesa estava sujeita a duas ordens confessionais: a Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg. Os arminianos, dessa forma, enquanto que sujeitos aos votos destas declarações da fé reformada, estavam advogando a subversão delas. E foram eles, nota bene, nos anos anteriores ao Sínodo provaram ser intolerantes com os homens, com respeito ao apoio às doutrinas da Igreja. Em muitas ocasiões ministros depostos pela Igreja por heresia eram mantidos no cargo pelos magistrados; e os ministros fiéis apoiados pela Igreja eram depostos por eles. Na verdade, os calvinistas eram privados do uso de edifícios, postos à parte, como seu próprio local de culto, e forçados a se reunirem onde quer que pudessem, e nem assim eram deixados em paz. Destarte a acusação de perseguição pôde escassamente ser feita, com justiça, pelos remonstrantes pois eles mesmos, quando podiam, se favoreciam dela. O resultado de Dort não foi a supressão de todas as religiões com exceção da reformada. Diferentemente de outros países da Europa, a Holanda já era o lar de pessoas oprimidas. Em 1609, os Pais Peregrinos tomaram o rumo de Leiden, e luteranos, anabatistas e mesmo católicos romanos eram tolerados, embora que confinados a locais privativos a seu próprio culto. É verdade que, após o Sínodo ter-se reunido, muitos pregadores que não se adequaram foram depostos. É verdade também que mesmo no Sínodo os arminianos eram tratados não como iguais – se bem que tivessem a pretensão de serem uma espécie de contra-sínodo – mas como aqueles que foram convocados para prestarem contas de si mesmos e para serem julgados. Mas isso nada tem a ver com a questão da tolerância como tal; é antes a questão de se a Igreja tem ou não o direito de obrigar sua própria confissão de fé e insistir em sua prerrogativa de privar de seus cargos os que se desviram daquela confissão e ensinavam o erro e não a verdade. A ação do Sínodo era disciplinar, voltada para membros e oficiais da Igreja que se tinham envolvido em heresias e tentaram mudar a confissão da Igreja, para ajustá-la às suas próprias opiniões. Apenas aqueles que são por si mesmos cautelosos quanto a adesão de estatutos confessionais, ou que já viveram sob perjúrio, havendo prometido uma coisa apenas para crer em outra, questionaram o direito do Sínodo de uma igreja de agir resolutamente em tais casos.

É impossível aqui aprofundarmo-nos nas questões teológicas inerentes à controvérsia arminiana. Para isso os leitores devem recorrer ao volume recentemente publicado pela Reformed Fellowship, de Grand Rapids, e editado pelo Dr. P. Y. de Jong, sob o título Crisis in the Reformed Churches (Crise nas Igrejas Reformadas), e também à magistral discussão de William Cunningham no volume II de sua Historical Theology (Teologia Histórica). A comtrovérsia dizia respeito às diferentes conceituações do homem e de Deus. Os arminianos representavam o reavivamento das doutrinas semi-pelagianas que havia tanto tempo flagelado a Igreja cristã. Embora o próprio Arminius não fosse um não-evangélico, entretanto a história subseqüente do movimento demonstra claramente que, quando a queda e suas conseqüências totais para o ser humano como um todo não é levada suficientemente a sério, e quando a salvação não é compreendida como total e completamente pela graça divina, então o resultado é inevitavelmente o racionalismo e coisa pior. Os teólogos de Dort não estavam, em primeiro lugar, preocupados com questões escolásticas não relacionadas com a vida. Para eles a controvérsia não era acadêmica em nenhum sentido. Era prática em último caso à vista deles, como na era de Atanásio, mil e duzentos anos antes em sua luta contra o arianismo, o problema principal era mesmo a salvação. Se os arminianos tivessem prevalecido e suas doutrinas introduzidas na Igreja, o resultado final seria destrutivo para a doutrina cristã da salvação. A partir dos Cânones – o caráter incondicional e gracioso da eleição; a expiação de Cristo limitada em seu desígnio e amplitude; a depravação total do homem; a graça irresistível; e a perseverança dos santos – foram todos, em resposta aos cinco artigos da remonstrance, com a intenção de estabelecer clara e inequivocamente o absoluto e gracioso caráter da salvação que “não depende de quem quer, ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia” (Rm 9.16).

Qual é então a importância atual de Dort? É tão somente esta: o erro arminiano, embora travestido sob um nome do século dezesseis, é tão antigo quanto o homem e ressurge sempre e sempre, freqüentemente sob novas formas, até mesmo com vestes evangélicas [como mesmo no caso de Arminius]. Encontra-se agora entre aqueles que, embora professem doutrina bíblica, ainda insistem na capacidade do homem de escolher a Deus por si mesmos. É também corrente, em forma muito mais radical, entre um grande número de teólogos não-ortodoxos e liberais que concentram seu raciocínio na antropologia e substituem a busca da Reforma por um Deus gracioso, pela busca de um próximo gracioso. Encontra-se onde quer que os homens não se sujeitem com humildade, obediência e fé ao Deus das Escrituras e não atribuem a Ele, não apenas a iniciativa, mas também todos os meios para o cumprimento da salvação em toda parte. A verdade fundamental que Dort levantou bem alto é a verdade na qual a Reforma na linha de Agostinho e mesmo a Palavra de Deus permanecem firmemente: Soli Deo gloria!

Fonte: Jornal Os Puritanos (Ano III – No. 2 – Março/Abril – 1995), pp.
Você já leu os Cânones de Dort? Leia aqui.

miguel silva

domingo, 11 de outubro de 2009

Declaração da Doutrina da Expiação Substitutiva e Penal




Na discussão deste conceito, devemos acentuar diversas particularidades


1. A EXPIAÇÃO É OBJETIVA

Que dizer que a expiação influi primordialmente na pessoa por quem é feita. Se um homem age mal e presta satisfação do mal que praticou, esta satisfação visa a influir na pessoa que praticou o mal, e não na parte ofendida. No caso em foco, significa que a expiação foi destinada a propiciar a Deus e reconciliá-lo com o pecador. Esta é, indubitavelmente, a idéia primordial, mas não implica que não podemos falar também da reconciliação do pecador com Deus. A Escritura o fazem mais de um lugar, Rm 5.10; 2 Co 5.19, 20. Deve-se ter em mentem, porém, que isto não é equivalente a dizer que o pecador é expiado, o que significaria que Deus fez emendas ou reparações, que Ele prestou satisfação ao pecador. E mesmo quando dizemos que o pecador foi reconciliado, isto dever ser entendido como algo secundário. O Deus reconciliado justifica o pecador que aceita a reconciliação, e de tal modo opera em seu coração pelo Espírito Santo, que o pecador põe de lado a iníqua alienação de Deus e, assim, participa dos frutos da perfeita expiação de Cristo.

Noutras palavras, o fato de que Cristo reconcilia a Deus com o pecador redunda numa ação reflexa da parte do pecador, em virtude da qual se pode dizer que o pecador se reconcilia com Deus. Desde que a expiação objetiva de Cristo é um fato consumado, e desde que agora é dever dos embaixadores de Cristo induzir os pecadores a aceitar a expiação e a pôr fim à sua hostilidade a Deus, não admira que ao aspecto secundário e subjetivo da reconciliação tenha, como tem, certa proeminência na Escritura. Esta exposição do car’ter objetivo da expiação é colocada em primeira plana porque representa a principal diferença entre os que aceitam a doutrina da expiação para satisfação e os que preferem alguma outra teoria.

Surge aqui a questão sobre se este entendimento da expiação tem o apoio da escritura. Vê-se amplo apoio nela. Devemos notar as seguintes particularidades:

a. O caráter fundamental do sacerdócio aponta claramente nessa direção. Enquanto os profetas representavam Deus entre os homens, os sacerdotes, em sua obra sacrificial e intercessória, representavam os homens na presença de Deus e, portanto, dirigiam-se a Deus. O escritor de Hebreus o expressa deste modo: “Porque todo sumo sacerdote, sendo tomado dentre os homens, é constituído nas cousas concernentes a Deus, a favor dos homens”, 5.1. Esta afirmação contém os seguintes elementos:

(1) O sacerdote é tomado dentre os homens, é membro da raça humana, de maneira que pode representar os homens;

(2) é constituído a favor dos homens, isto é, para agir no interesse dos homens; e

(3) é constituído para representar os homens nas coisas concernentes a Deus, isto é, nas coisas que se dirigem rumo a Deus, que olham para Deus, que acabam em Deus. É isto uma clara indicação do fato de que a obra do sacerdote tem em vista primordialmente a Deus. O que não exclui a idéia de que a obra sacerdotal também tem uma influencia reflexa sobre os homens.

b. A mesma verdade é transmitida pela idéia geral dos sacrifícios.Estes Têm evidentemente, um aspecto objetivo. Mesmo entre os gentios, eles eram apresentados, não aos homens, mas a Deus. Supunha-se que eles produziam efeito em Deus. A idéia escriturística do sacrifício não difere disso, em sua relação objetiva. Os sacrifícios do Velho testamento eram apresentados a Deus primeiramente para expiar o pecado, mas também como expressões de devoção e gratidão. Daí, o sangue tinha que ser levado às expressa presença de Deus. Diz o escritor de Hebreus que as “cousas concernentes a Deus” consistem em “oferecer assim dons como sacrifícios pelos pecados”. Os amigos de Jó foram concitados a apresentar sacrifícios “para que eu”diz o Senhor, “não vos trate segundo a vossa loucura”, Jó 42.8. os sacrifícios serviam de instrumentos para amenizar a ira do Senhor.

c. A palavra hebraica kipper (no piel) expressa a idéia de expiação do pecado pela cobertura do pecado ou do pecador. O sangue do sacrifico é interposto entre Deus e o pecador e, em vista da ira de Deus, Na Septuaginta e no Novo Testamento os termos hilaskom e hilasmos são empregados num sentido conexo. O verbo significa “tornar propicio”, e o substantivo, “apaziguamento” ou “meio de apaziguar”. São termos de caráter objetivo.

No grego clássico muitas vezes ocorrem em construções gramaticais com o acusativo de theos (Deus), embora não haja exemplo disto na Bíblia. No Novo Testamento o correm em construções com o acusativo da coisa referida (hamartias), Hb 2.17, ou com peri e o genitivo da coisa (harmation), 1 Jo 2.2; 4 .10. Interpreta-se melhor a primeira passagem à luz do uso do hebraico kipper; a última pode ser interpretada de modo semelhante, ou com theon como o objeto compreendido. Há tantas passagens que falam da ira de Deus e de Deus estando irado com os pecadores, que estamos plenamente justificados por falar de uma propiciação de Deus, Rm 1.18; Gl 3.10; Ef 2.3; Rm 5.9. Em Rm 5.10 e 11.28 os pecadores são chamados “inimigos de Deus” (echthroi) num sentido passivo, indicando, não que são hostis a Deus, mas que são objetos de desprazer de Deus. Na primeira passagem este sentido é exigido por sua ligação com o versículo anterior; na ultima, pelo fato de que echthroi está em contraste com agapetoi, que significa “os que amam a Deus”, mas, sim, “amados de Deus”.

d. As palavras katalasso e katalage significam “reconciliar” e “reconciliação”. Indicam uma ação pela qual a inimizade e certamente possuem, primeiramente, uma significação objetiva. O ofensor reconcilia, não a si próprio, mas a pessoa ofendida. Isto vem demonstrado claramente em Mt 5.23, 24: “Se, pois, ao trazeres ap altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma cousa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão (o que, neste contexto, só pode significar, reconcilia teu irmão contigo mesmo, o que é objetivo); e, então voltando, faze a tua oferta”.

O irmão que supostamente fizera a ofensa é procurado para que o mal ou a injustiça feita seja retirada. Ele precisa propiciar ou reconciliar consigo o seu irmão, seja qual for a compensação requerida. Em conexão com a obra de Cristo, as palavras que estão sendo consideradas certamente denotam, nalguns casos, a efetuação de uma mudança na relação judicial entre Deus e o pecador pela retirada da demanda judicial. De acordo co 2 Co 5.19, o fato de que Deus reconciliou Consigo o mundo evidencia que Ele não lhe imputa os seus pecados. Isto não mostra nenhuma mudança moral ocorrida no homem, mas, sim o fato de que as exigências da lei estão satisfeitas e que Deus está satisfeito.Em Rm 5.10, 11 o termo “reconciliação” só pode ser entendido num sentido objetivo, pois,

(1) dela se diz que foi efetuada pela morte de Cristo, ao passo que a reconciliação subjetiva é resultado da obra do Espírito; (

2) foi efetuada enquanto ainda éramos inimigos, isto é, enquanto ainda éramos objetos da ira de Deus; e

(3) é descrita no versículo 11 como uma coisa objetiva que recebemos.

e. Os termos lytron e antilytron também são objetivos. Cristo é o Goel, o Libertador, At 20.28; 1 Co 6.20; 7.23. Ele resgata os pecadores das exigências da justiça retributiva de Deus. O preço é pago a Deus por Cristo como representante do pecador. É evidente que a Bíblia nos justifica abundantemente na atribuição que fazemos de um caráter objetivo à expiação.Além disso, estritamente falando, a expiação, no sentido próprio da palavra, é sempre objetiva. Não existe expiação subjetiva. Na expiação é sempre a parte que agiu mal que faz reparações àquele que foi prejudicado pela má ação.


2. É UMA EXPIAÇÃO VICÁRIA

a. sentido da expressão “expiação vicária”. Há diferença entre expiação pessoal e vicária. Nosso interesse se volta particularmente para a diferença entre ambas quanto à expiação de Cristo. Quando o homem caiu e se afastou de Deus, ficou devendo uma reparação a Deus. Mas ele só poderia expiar o seu pecado sofrendo eternamente a penalidade fixada para a transgressão. É o que Deus podia exigir, pela estrita justiça, e teria exigido, se não tivesse agido com amor e compaixão pelo pecador. De fato, porém, Deus designou um substituto na pessoa de Jesus Cristo para tomar o lugar do homem, e este substituto expiou o pecado e obteve eterna redenção para o homem. O dr. Shedd chama a atenção para os seguintes pontos de diferença neste caso:

(1) A expiação pessoal é providenciada pela parte ofensora; a expiação vicária, pela parte ofendida.

(2) A expiação pessoal excluiria o elemento de misericórdia; a expiação vicária representa a mais elevada forma de misericórdia.

(3) A expiação pessoal estaria em ação para sempre e, daí, não poderia redundar em redenção; a expiação vicária leva à reconciliação e a vida eterna.

b. A possibilidade da expiação vicária. Todos quantos defendem uma teoria subjetiva da expiação levantam uma formidável objeção à idéia da expiação vicária. Acham inimaginável que um Deus justo transfira a Sua ira contra ofensores morais para uma parte perfeitamente inocente, e que trate judicialmente o inocente como se fosse culpado. Há, indubitavelmente, uma real dificuldade aqui, especialmente em vista do fato de que isto parece contrário a toda analogia humana. Não podemos concluir da possibilidade da transferência de um débito pecuniário que haja possibilidade de transferência de um débito penal. Se uma pessoa bondosa se oferecer para pagar o débito pecuniário de outrem, o pagamento terá que ser aceito e, ipso facto, o devedor ficará livre de toda obrigação. Mas não é este o caso, quando alguém se oferece para expiar vicariamente a transgressão de outrem.

Para ter valor legal, precisa ser expressamente permitido e autorizado pelo legislador. Com referência à lei, isto se chama relaxação judicial, e, com relação ao pecador, é conhecido como remissão. O juiz não necessita permitir isso, mas poderá fazê-lo; todavia, poderá permiti-lo somente sob certas condições, como (1) que a parte culpada não esteja em condições de suportar a penalidade até o fim, pelo que resulta numa relação justa; (2) que a transferência não invada os direitos e privilégios de terceiros inocentes, nem os leve a sofrer dificuldades e privações; (3) que a pessoa que se dispõe a sofrer a penalidade já não seja devedora à justiça, e não tenha que prestar serviços devidos ao governo; e (4) que a parte culpada mantenha a consciência da sua culpa e do fato de que o substituto estará sofrendo por ela. Em vista disso tudo, poder-se-á entender que a transferência do débito penal é quase, senão inteiramente, impossível entre os homens. No caso de Cristo, porém, totalmente único que é, porquanto obteve uma situação sem paralelo, todas as condições mencionadas foram preenchidas. Não houve injustiça de nenhuma espécie.

c. Provas bíblicas da expiação vicária de Cristo. A Bíblia certamente ensina que os sofrimentos e a morte de Cristo foram vicários, e vicários no sentido estrito da palavra, que Ele tomou o lugar dos pecadores, e que a culpa deles Lhe foi imputada e a punição que mereciam foi transferida para Ele. Não é nada disso que Bushnell quer dizer quando fala do “sacrifício vicário” de Cristo. Para ele, isto significa apenas que Cristo levou sobre Si os nossos pecados “em Seu sentimento”, inseriu-se no mau destino dos pecadores por Sua simpatia, como amigo, e até mesmo se dedicou, e dedicou Sua vida, a um esforço pela restauração da misericórdia; numa palavra, que Ele levou sobre Si os nossos pecados no mesmo sentido em que levou sobre Si as nossas enfermidades”.

Os sofrimentos de Cristo não foram tão somente os sofrimentos que um amigo padece por simpatia, mas, sim, foram os sofrimentos substitutivos do Cordeiro de Deus pelos pecados do mundo. As provas escriturísticas disto podem ser classificadas como segue:

(1) O Velho Testamento nos ensina a considerar como vicários os sacrifícios que eram apresentados sobre o altar. Quando o israelita apresentava um sacrifício ao Senhor, tinha que pôr a mão sobre a cabeça do sacrifício e confessar o seu pecado. Este ato simbolizava a transferência do pecado para a oferta e a tornava apta para expiar o pecado do ofertante, Lv 1.4. Cave e outros consideram esse ato apenas como um símbolo de dedicação. Mas isto não explica a razão pela qual a imposição das mãos habilitava o sacrifício a fazer expiação pelo pecado. Tampouco está em harmonia com o que aprendemos a respeito do significado da imposição das mãos no caso do bode expiatório em Lv 16.20-22.

Após a imposição das mãos, a morte era infligida vicariamente ao animal oferecido em sacrifício. A significação disto é claramente indicada na passagem clássica que se acha em Lv 17.11: “Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas: porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da vida”. Diz o dr. Vos: “O animal sacrificial toma, em sua morte, o lugar da morte que cabia ao ofertante. É pena por pena”. Os sacrifícios assim apresentados eram prefigurações do grande e único sacrifício de Jesus Cristo.

(2) Há várias passagens na Escritura que falam dos nossos pecados sendo lançados sobre Cristo e de Cristo levando sobre Si o pecado ou a iniqüidade, Is 53.6, 12; Jo 1.29; 2 Co 5.21; Gl 3.13; Hb 9.28; 1 Pe 2.24. Com base na Escritura podemos, pois, dizer que os nossos pecados são imputados a Cristo. Não significa que a nossa pecaminosidade foi transferida para Ele – coisa em si mesma completamente impossível – mas, sim, que a culpa do nosso pecado Lhe foi imputada. Diz o dr. A. A. Hodge: “Pode-se considerar o pecado (1) em sua natureza formal, como transgressão da lei, 1 Jo 3.4; ou (2) como qualidade moral inerente ao agente (macula, Mácula), Rm 6.11-13; ou (3) com respeito à sua obrigação legal para com a punição (reatus, condição de réu, culpabilidade). Somente neste último sentido sempre se diz que o pecado de u é lançado sobre ou é por este levado sobre si”.

Estritamente falando, então, a culpa do pecado, como coisa passível de punição, foi imputada a Cristo; e esta só pôde ser transferida porque não era inerente à pessoa do pecador, mas era uma coisa objetiva.

(3) Finalmente, há diversas passagens em que as preposições peri, hyper e anti são empregadas em conexão com a obra realizada por Cristo em favor dos pecadores. A idéia de substituição é menos expressa pela primeira, e mais pela última preposição. Mas, mesmo para a interpretação de hyper e anti, temos que depender grandemente do contexto, pois, embora a primeira signifique realmente “a favor de”, “no interesse de”, pode expressar, e nalguns casos expressa, a idéia de substituição, e embora a última possa significar “em lugar de”, nem sempre tem esse sentido.

É muito interessante notar que, de acordo com Deismann, encontraram-se nas inscrições vários exemplos do uso de hyper significando “como representante de”. Vemos um emprego parecido desta preposição em Filemom 13. Em passagens como Rm 5.6-8; 8.32; Gl 2.20; Hb 2.9, provavelmente significa “em lugar de”, embora também possa ser traduzida por “em favor de”; mas em Gl 13.13; Jo 11.50; 2 Co 5.15, certamente significa “em lugar de”. Diz Robertson que só a violência ao texto poderá evitar esse sentido ali. A preposição anti significa claramente “em lugar de” em Mt 2.22; 5.38; 20.28; Mc 10.45. Segundo Robertson, qualquer outro sentido do termo está fora de questão nessas passagens. A mesma idéia é expressa em 1 Tm 2.6.

d. Objeções à idéia da expiação vicária. Várias objeções são feitas à idéia da expiação vicária.

(1) A substituição nas questões penais é ilegal. Geralmente se admite que, nos casos de uma dívida pecuniária, o pagamento feito por um substituto não é somente permissível, mas deve ser aceito, e cancela definitivamente toda obrigação posterior da parte do devedor original. Contudo, dizem que a dívida penal é tão pessoal que não admite nenhuma transferência como aquela. Mas é mais que evidente que existem outros casos, além dos de natureza pecuniária, em que a lei prevê a substituição. Armour, em sua obra sobre A Expiação e a Lei (Atonement and Law), menciona três tipos de casos assim. O primeiro é o da substituição no caso do serviço militar requerido pelo bem do próprio país.

A respeito do terceiro, diz ele: “mesmo em caso de crise, a lei, como é entendida e ministrada pelos homens de todas as terras, estabelece que a pena pode ser cumprida por um substituto, em todos os casos em que a pena prescrita é tal que um substituto possa cumpri-la coerentemente com as obrigações sob as quais ele já se acha”.

É perfeitamente evidente que a lei reconhece o princípio de substituição, conquanto não seja fácil citar casos em que sofressem as penas impostas a estes. Isto encontra suficiente explicação no fato de que normalmente é impossível encontrar homens que preencham todas as condições expostas no item (b), acima. Mas o fato de que é impossível encontrar homens que preencham essas condições não é prova de que Jesus Cristo não as pôde preencher. Na verdade, ele pôde e o fez, e, portanto, foi um substituo aceitável.

(2) Faz o inocente sofrer pelo mau. É a pura verdade que, de acordo com a doutrina penal substitutiva da expiação, Cristo sofreu como “o justo pelos injustos” (1 Pe 3.18), mas dificilmente se pode impor isto como objeção à doutrina da expiação vicária. Na forma que esta doutrina leva o inocente a sofrer as conseqüências da culpa dos maus e, portanto, é inaceitável, é o mesmo que levantar objeção contra o governo moral de Deus em geral. Na vida real, muitas vezes os inocentes sofrem em resultado da transgressão de outros. Além disso, nesta forma a objeção valeria contra todas as teorias da expiação, assim chamadas, pois elas apresentam os sofrimentos de Cristo como sendo, nalgum sentido, resultado dos pecados da humanidade. Às vezes se diz que um agente moral não pode razoavelmente ser responsabilizado pro nenhum pecado, exceto se o cometer pessoalmente; mas isto é contraditado pelos fatos da vida. Alguém que paga outro para cometer um crime é responsável pelo referido crime; assim se dá com todos os cúmplices de um crime.

(3) Faz de Deus o pai culpado de injustiça. Parece que todas as objeções são realmente variações do mesmo tema. A terceira é virtualmente igual à segunda, colocada numa forma um tanto mais legal. A doutrina da expiação vicária, dizem, envolve, injustiça da parte do pai, no sentido de que Ele simplesmente sacrifica o Filho pelos pecados da humanidade. Esta objeção já foi levantada pro Abelardo, mas ignora vários fatos pertinentes. Não foi o pai, mas o trino Deus que concebeu o plano de redenção. Houve um solene acordo entre as três pessoas da Divindade. E neste plano o Filho se incumbiu voluntariamente de sofrer a pena pelo pecado e de satisfazer as exigências da lei divina. E não somente isso, mas a obra sacrificial de Cristo trouxe também imenso proveito e glória para Cristo como Mediador.

Significou para Ele uma numerosa semente, adoração cheia de amor e um reino glorioso. E, finalmente, esta objeção funciona como um bumerangue, pois volta vingativamente para a cabeça daqueles que, como Abelardo, negam a necessidade de uma expiação objetiva, uma vez que todos eles concordam que o pai enviou o Filho ao mundo para amargo sofrimento e vergonhosa morte que, apesar de benéfica, todavia era desnecessária. Isto sim, teria sido cruel!

(4) Não há aquela união que justificaria uma expiação vicária. O que se diz é que, se um substituto deve remover a culpa de um ofensor, é preciso haver uma real união entre eles que justificasse tal procedimento. Pode-se admitir a necessidade da haver uma união antecedente entre um substituto e aqueles que ele representa, mas a idéia de que essa união deve ser orgânica, como a que os componentes em geral têm em mente, não se pode conceder. De fato, a requerida união deve ser legal, e não orgânica, e foi feita provisão para essa união no plano de redenção. Nas profundezas da eternidade, o Mediador da nova aliança encarregou-se livremente de ser o representante do Seu povo, isto é, daqueles que o pai Lhe deu.

Foi estabelecida uma relação federal, em virtude da qual Ele se tornou o seu Fiador. Esta é a união básica e mais fundamental entre Cristo e os Seus e, com base nisto, formou-se uma união mística, idealmente no conselho de paz, a concretizar-se no curso da história na união orgânica de Cristo e Sua igreja. Portanto, Cristo pode agir como o representante legal dos Seus e, estando em união mística com eles, pode também comunicar-lhes as bênçãos da salvação.

3. INCLUI A OBEDIÊNCIA ATIVA E PASSIVA DE CRISTO

É costume distinguir-se entre a obediência ativa e a obediência passiva de Cristo. Mas, ao fazer-se discriminações entre ambas, deve-se entender distintamente que elas não podem ser separadas. As duas acompanham uma à outra em todos os pontos da vida do Salvador. Há uma constante interpretação de ambas. Uma parte da obediência ativa de Cristo era que Ele se sujeitasse voluntariamente aos sofrimentos e à morte. Ele mesmo diz, referindo-se à Sua vida: “Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou”, Jo 10.18. Por outro lado, também era parte da obediência passiva de Cristo que Ele vivesse em sujeição à lei.

Seu viver de servo constitui um importante elemento dos Seus sofrimentos. A obediência ativa e a obediência passiva de Cristo devem ser consideradas partes complementares de um todo orgânico. Na discussão deste assunto é preciso ter em conta a tríplice relação de Cristo com a lei, a saber, a relação natural, a federal e a penal. O homem revelou-se um fracasso em cada uma delas. Ele não guardou a lei em seus aspectos natural e federal, e agora não está em condições de cumprir a pena, para ser restabelecido no favor de Deus. Embora naturalmente Cristo tenha entrado na primeira relação por Sua encarnação, vicariamente só entrou na segunda e na terceira relações. E é particularmente nestas que está o nosso interesse neste contexto.

a. A obediência ativa de Cristo. Como Mediador, Cristo entrou na relação federal em que se achava Adão em seu estado de integridade, e o fez para merecer a vida eterna para o pecador. Isto constitui a obediência ativa de Cristo, que consiste em tudo que Cristo fez para observar a lei em seu aspecto federal, como condição para obter a vida eterna. A obediência ativa de Cristo foi necessária para tornar aceitável a Deus a Sua obediência passiva, isto é, para fazer Del objeto do beneplácito de Deus.

É somente por causa da obediência ativa de Cristo que os Seus sofrimentos recebem de Deus uma avaliação diferente da que recebem os sofrimentos dos perdidos. Além disso, se Cristo não tivesse prestado obediência ativa, a própria natureza humana de Cristo teria ficado aquém das justas exigências de Deus, e Cristo não teria competência para fazer expiação a favor de outros. E, finalmente, se Cristo tivesse sofrido somente a pena imposta ao homem, os que partilhassem os frutos da Sua Obra seriam deixados exatamente onde Adão estava antes da Queda. Cristo merece pelos pecadores mais do que o perdão de pecados. De acordo com Gl 4.4, 5, por intermédio de Cristo eles ficam livres da lei como condição para a vida, são adotados como filhos de Deus e, como filhos, são também herdeiros da vida eterna, Gl 4.7. Tudo isso é primariamente condicionado pela obediência ativa de Cristo. Por intermédio de Cristo a justiça da fé substitui a da lei, Rm 10.3, 4. Diz-nos Paulo que, pela obra realizada por Cristo, a justiça ou “o preceito da lei” se cumpre em nós, Rm 8.3, 4, e que fomos feitos “justiça de Deus”, 2 Co 5.21.

Segundo Anselmo, a vida de obediência de Cristo não tem sentido redentor, visto

que Ele mesmo a devia a Deus. Somente os sofrimentos do Salvador constituíram uma reivindicação a Deus e desempenharam papel fundamental para a redenção do pecador. Pensando de maneira um tanto parecida, Piscator, os arminianos do século dezessete, Richard Watson, R. N. Davies e outros eruditos arminianos, negam que a obediência ativa de Cristo tenha a significação redentora que lhe atribuímos. Sua negação funda-se principalmente em duas considerações: (

1) Cristo precisava de Sua obediência ativa em Seu próprio favor, como homem. Estando sob a lei, tinha a obrigação de cumpri-la para o Seu próprio bem. Em resposta a isto, pode-se dizer que, apesar de Cristo possuir natureza humana, era, obstante, uma pessoa divina e, como tal, não estava sujeito à lei em seu aspecto federal, à lei como condição da aliança das obras para a vida. Todavia, como o último Adão, Ele tomou o lugar do primeiro. O primeiro Adão estava por natureza debaixo da lei de Deus e observá-la nesta qualidade não lhe dava direito a recompensa. Foi somente quando Deus, por Sua graça, entrou em aliança com ele e lhe prometeu vida pela obediência, que a guarda da lei passou a ser a condição para a obtenção da vida eterna para ele e para os seus descendentes. E quando Cristo entrou voluntariamente na relação federal como o último Adão, naturalmente a guarda da lei adquiriu a mesma significação para Ele e para aqueles que o pai Lhe dera.

(2) Deus exige, ou pode exigir, somente uma de duas coisas do pecador: Ou obediência à lei, ou sujeição à pena; mas não pode exigir as duas coisas. Se a lei for obedecida, a pena não poderá ser infligida; e se a pena for cumprida, nada mais poderá ser exigido. Há, porém, certa confusão aí, confusão que redunda em mal entendido. Esta alternativa, “ou...ou”, era aplicável ao caso de Adão antes da Queda, mas sua aplicação cessou no momento em que ele pecou e, assim, entrou numa relação penal com a lei. Deus continuou a exigir a obediência do homem, mas, em acréscimo a isto, exigiu que ele cumprisse e pena pela transgressão passada.Satisfazer esta dupla exigência era o único meio de obtenção da vida, depois que o pecado entrou no mundo. Se Cristo cumprisse meramente a lei e não cumprisse também a pena, não conseguiria o direito à vida eterna a favor dos pecadores; e se Ele apenas cumprisse a pena, sem satisfazer as exigências originais da lei, deixaria o homem nas condições de Adão antes da Queda, ainda confrontando com a incumbência de obter a vida eterna pela obediência. Contudo, por Sua obediência, Ele conduziu o Seu povo para além daquele ponto e lhe deu direito à vida eterna.

b. A obediência passiva de Cristo. Como Mediador, Cristo entrou também na relação penal com a lei, a fim de cumprir a pena em nosso lugar. Sua obediência passiva consistiu em Seu cumprimento da penalidade do pecado mediante os Seus sofrimentos e morte, cancelando assim o débito de todo o Seu povo. Os sofrimentos de Cristo, já descritos, não Lhe sobrevieram acidentalmente, nem como resultado de circunstancias puramente naturais. Foram lançados judicialmente sobre Ele como o nosso representante e, portanto, foram sofrimentos realmente penais. O valor redentor desses sofrimentos resulta dos seguintes fatos: Foram padecidos por uma pessoa divina que, somente em virtude as Sua divindade, podia sofrer a penalidade até o fim e, assim libertar-se dela.

Em vista do valor infinito da pessoa que se encarregou de pagar o preço e sofrer a maldição, eles satisfizeram essencial e intensivamente a justiça de Deus. Foram sofrimentos estritamente morais, pois Cristo os tomou sobre Si voluntariamente e, ao padece-los, era perfeitamente inocente e santo. A obediência passiva de Cristo sobressai proeminentemente em passagens como as seguintes: Is 53.6; Rm 4.25; 1 Pe 2.24; 3.18; 1 Jo 2.2, enquanto que a Sua obediência ativa é ensinada em passagens como Mt 3.15; 5.17, 18; Jo 15.10; Gl 4.4, 5; Hb 10.7-9, em conexão com as passagens que nos ensinam que Cristo é a nossa justiça, Rm 10.4; 2 Co 5.21; Fp 3.9; e quer ele nos assegurou a vida eterna, a adoção de filhos, e uma herança eterna, Gl 3.13, 14; 4.4, 5; Ef 1.3-12; 5.25-27. os arminianos estão dispostos a admitir que Cristo, por Sua obediência passiva, mereceu para nós o perdão de pecados, mas se recusam a conceder que Ele também mereceu para nós a positiva aceitação da parte de Deus, a adoção de filhos e a vida eterna.



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