quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Alta Crítica – Como esta escola afetou o Antigo Testamento.

Para o estudante da Bíblia algumas datas são de fundamental importância: no final do século IV, contrapondo um dos arquiinimigos da Igreja Cristã – Marcião, Atanásio apresentou pela primeira vez uma coleção de livros que acreditava terem sido dados por inspiração divina. Em 397, num concílio realizado em Cartago, a Igreja reconheceu e recebeu oficialmente todos os vinte sete livros que hoje compõem o cânon cristão (exatamente os mesmos escritos que foram aceitos por Atanásio, anos antes). Tal decisão conciliar foi confirmada por outra reunião de bispos, nesta feita em Hipona, no ano de 419.
No século XVI, “os reformadores romperam com o método alegórico medieval de interpretação bíblica e com o método escolástico dominado pela razão e pela tradição eclesiástica, inaugurando uma nova época na exegese bíblica” [1]. A Reforma Protestante foi um grande avanço no conhecimento das Escrituras em razão do seu profundo interesse por uma teologia derivada do texto sagrado. Enquanto Lutero reformava a Alemanha, Tyndale progredia no seu propósito de dar ao povo inglês a Bíblia em sua língua – o que conseguiu a custo de sua própria vida, mas confiante de que teria uma ressurreição melhor.
Entretanto, é em 1883, com o advento da Teoria Documentária da Alta Crítica, que o texto sagrado do Antigo Testamento, sofre uma série de ataques que emanaram de um escritor alemão chamado Julius Wellhausen. O fato é que seus conceitos não eram novos em sua época, mas consistiam na conclusão lógica de diversas idéias que se formaram por mais de um século. Este erudito, de tendência racionalista, acreditava que o Pentateuco era uma mera compilação de escritos redigidos em épocas nada semelhantes ou próximas da que tradicionalmente se aceitava. Seus estudos o levaram a concluir que o texto mais antigo da Torah (os cinco livros escritos por Moisés) remontava ao século X a.C. e, o mais recente (na verdade a maioria), Wellhausen atribuiu ao contexto de Esdras (444 a.C), sendo este o seu autor/editor. Lendas, mitos e sagas são algumas das formas literárias encontradas nestes e outros escritos veterotestamentários, segundo, Wellhausen e seus seguidores.
A Teoria Documentária identifica quatro fontes para a autoria do Pentateuco. Estas quatro fontes são, respectivamente, chamadas de Javista (J), Eloísta (E), Deuteronomista (D) e Sacerdotal (P – a abreviatura procede do alemão Priester, isto é, sacerdote). A hipótese documentária, embora tenha perdido influência desde a década de 80, “tem sido o mais forte rival do ponto de vista tradicional de que Moisés foi a fonte do Pentateuco. Em contraste com este último ponto de vista, a hipótese documentária tira o Pentateuco totalmente das mãos de Moisés, o que, para muitos, levanta indagações sobre a veracidade e autoridade de Gênesis e do Pentateuco”[2].
Alguns fatores de identificação levaram Wellhausen e outros eruditos à probabilidade da autoria múltipla do Pentateuco:

1. A diversidade de nomes divinos, principalmente hwhy e ~yhla[3];
2. O uso de mais de um nome para se referir a um lugar ou pessoa (ex.: o sogro de Moisés é chamado de Jetro, Reuel e Hobabe);
3. A existência de duplicados: trata-se do relato de eventos que possuem a mesma estrutura, mas que tratam de personagens diferentes;
4. Teologias diferentes.

Um número imenso de estudiosos, após Wellhausen, aderiram à hipótese como a melhor forma de se explicar o livro do Gênesis, principalmente seus 11 primeiros capítulos que oferece, certamente, um registro nada convincente para aqueles que não partem do pressuposto da fé. Alunos, professores e seminários inteiros foram infestados por esta compreensão distorcida das Escrituras e suas origens. Isto foi razão suficiente para o surgimento de movimentos de oposição como o fundamentalismo protestante do século passado. Teólogos levantaram suas “penas” contra aqueles que estavam minando a fé cristã com esta mentalidade crítica. O fato é que hoje, há quase um século e meio, o nome de Wellhausen já não tem tanta influência como nos tempos passados. Tem surgido uma “epidemia” de dúvidas quanto à hipótese documentária. Alguns autores como Kitchen têm mostrado que vários nomes eram empregados às divindades do antigo Oriente Próximo, de forma que a variação pode ter ocorrido como resultado de práticas estilísticas e não, necessariamente, da multiplicidade de fontes. Também, entre autores conservadores, se reconhece o fato de que haja, no Pentateuco, a presença de duplicados. Robert Alter mostra que estes duplicados são ocorrências deliberadas no texto sagrado, de forma que, tal estrutura textual é elaborada objetivando atrair a atenção do leitor para a relação entre os relatos.
Todo estudante comprometido com a ortodoxia cristã deve, necessariamente, estar ciente da ocorrência destes fatos, bem como estar preparado para fornecer respostas coerentes que justifiquem sua fé. Para um pastor, tais assuntos são de extrema relevância em vista de sua responsabilidade de prestar cuidados ao rebanho de Deus. Nas escolas e faculdades, predominam um ceticismo vestido de ciência e intelectualidade no que diz respeito às verdades cristãs e, a tais ensinamentos, são submetidos os jovens membros das igrejas. É necessário instruí-los na verdade revelada nas Escrituras defendendo e demonstrando coerentemente a veracidade da Bíblia e a inconsistência de todos aqueles que consciente ou inconscientemente se opõe à ela.


Em Cristo que nos ama.
Irmão Geraldo Batista.

[1] ANGLADA, Paulo. Introdução à hermenêutica reformada: correntes históricas, pressuposições, princípios e métodos linguísticos. Paraná: Knox Publicações, 2006, 72.
[2] LONGMAN III, Tremper. Como ler gênesis. São Paulo: Vida Nova, 2009, 59-60.
[3] ~yhla: Elohim e hwhy: Iavé ou como está na Bíblia de Jerusalém Yahweh.

6 comentários:

  1. Não entendo porque há tanta resistência à teoria das fontes no meio protestante (do qual também faço parte). Wellhausen deu um grande avanço na compreensão da formação do Pentateuco, mas figuras como Martin Noth, Von Rad e Rolf Hendtorff foram ainda mais longe. A junção das fontes (ou círculos narrativos) parecem ter sido ainda mais complexos. Há quem não faça distinção entre a fonte elohista e sacerdotal, por exemplo.

    Sinceramente acho muito difícil, à luz do que foi apresentado por esses pensadores, defender a autoria mosaica para o Pentateuco. O que não podemos é negar a inspiração divina da Bíblia como fizeram alguns teólogos liberais.

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  2. A hipótese documentária é rejeitada por vários motivos. Ela tem em sua origem a aceitação do Evolucionismo Darwiniano, a ideia de evolução das religiões a partir do Animismo, a negação do sobrenatural, além de um Deísmo extremamente cético. Tudo isto nós negamos, pois acreditamos ser um tiro no pé da própria teologia Bíblica, adotar esta forma de ver o pentateuco levará ao fim da teologia. Você pode dar uma lida em "Merece Confiança o Antigo Testamento?" de Gleason L. Archer Jr, ele faz uma boa análise das teorias desde o princípio, e defende a autoria de Moisés. Além disto você pode ver o vídeo do Dr. Augustus Nicodemus sobre o método Histórico-Crítico:
    http://www.mackenzie.br/videos_congresso.html

    Abraços,

    Ronaldo.

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  3. Sobre sua frase: “Ela [a hipótese documentária] tem em sua origem a aceitação do Evolucionismo Darwiniano, a idéia de evolução das religiões a partir do Animismo, a negação do sobrenatural, além de um Deísmo extremamente cético”.

    Discordo, com todo o respeito. Uma coisa é dizer que o evolucionismo darwininiano influenciou a hipótese documentária e outra bem diferente é afirmar que a teoria de Wellhausen está ancorada no evolucionismo biológico. Wellhausen fala numa evolução da monolatria para o monoteísmo provocado pelo profetismo israelita (séc. VIII em diante). Não tenho nenhuma dúvida de que a religião de Israel passou por uma evolução. Se isso não fosse verdade ainda estaríamos apedrejando crianças desobedientes (cf. Dt 21,18-21) e enterrando nossas fezes como sinal de santidade (cf. Dt 23,13-14).

    Acho que apologistas como Augusto Nicodemus (extremamente conservadores) deveriam tomar consciência de que a teologia não é algo imutável.

    Sobre uma visão (não distorcida/não apologética) a respeito da hipótese documentária, veja:

    ARTUS, Olivier. Aproximación actual al Pentateuco. Estella: Editorial Verbo Divino, 2001.
    ZENGER, Erich. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003.
    SKA, Jean Louis. Introdução à leitura do Pentateuco. São Paulo: Loyola, 2003.

    Para uma apresentação bem didática sobre o assunto:

    GABEL, John B.; WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2003.

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  4. Deixe-me fazer algumas considerações ao que você disse:

    “Discordo, com todo o respeito. Uma coisa é dizer que o evolucionismo darwininiano influenciou a hipótese documentária e outra bem diferente é afirmar que a teoria de Wellhausen está ancorada no evolucionismo biológico.”

    Concordo que há uma diferença, mas em que se baseia a ideia de que a religião nasceu em concepções animistas? Foi por uma análise Bíblica ou uma aceitação de estudos antropológicos extremamente falseáveis? A negação da literalidade do texto da Criação se deve ao próprio texto dizer isto ou a aceitação do método evolucionista de Darwin? A negação da autoria de Moisés foi levada por textos Bíblicos que atestam isto ou pela negação da consciência mosaica sobre tantos temas que o Pentateuco evoca?

    “Wellhausen fala numa evolução da monolatria para o monoteísmo provocado pelo profetismo israelita (séc. VIII em diante).”

    Segundo ele mesmo a monolatria é estranha a natureza humana, isto deve ter vindo por influência Egípcia, porque os semitas cultuavam vários deuses de forma mais igual como os gregos.Ele diz:

    “Exclusive monolatry is by no means innate in the cultus; it can only be deduced from considerations which are foreign to the nature of the cultus: it is the antitype of strict monotheism.” (Prolegomena to the History of the Ancient Israel)
    “Monolatria Exclusiva não é demonstrado de forma inata nos cultos; ela pode somente ser deduzido por considerações que são estranhas para a natureza dos cultos: ela é o antítipo do monoteísmo estrito.”

    Sua lógica dialética(ruim) leva-o a pensar sempre por meio de tese e antítese, assim, Assim, a Monolatria é anterior ao monoteísmo que encerra a evolução da religião judaica. Discordo tanto do método Hegeliano, que considero ruim, já que leva a contradições e portanto, é irracional. E também a ideia de que Deus não se revela como único Deus, só muito tardiamente, ideia esta que não está na Escritura, mas sim nos livros de antropologia.

    “Não tenho nenhuma dúvida de que a religião de Israel passou por uma evolução. Se isso não fosse verdade ainda estaríamos apedrejando crianças desobedientes (cf. Dt 21,18-21) e enterrando nossas fezes como sinal de santidade (cf. Dt 23,13-14).”

    Concordo que há evolução, discordo de onde começou a evolução e de onde terminou, além dos argumentos que levam as pessoas a pensar sobre esta evolução.

    “Acho que apologistas como Augusto(sic) Nicodemus (extremamente conservadores) deveriam tomar consciência de que a teologia não é algo imutável.”

    O que não significa que o passado está errado. Muitos problemas acontecem com estes pressupostos, pra citar novamente Wellhausen:

    “I, on the contrary, can allow no invention in these oldest portions of mythology. A true myth is never invented; it is handed down. It is not true, but it is honest.” (Prolegomena to the History of the Ancient Israel)
    “Eu, pelo contrário, posso admintir nenhuma invenção nesta porção mais antiga da mitologia. A verdade mítica nunca é inventada; ela é proferida. Ela não é verdade, mas é honesta.”

    Ao fim, ficamos querendo saber o que é verdade do que não é na Escritura, ou em outras palavras, o que é palavra de Deus e o que não é.

    Ronaldo Barboza
    Apenaafiada.

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  5. Jonas Faria, boa tarde.
    O livro dos salmos é considerado como sendo fruto da pena de Davi. Isto se dá em razão de que este personagem é o responsável pela maioria das composições do saltério. Entretanto, bem sabemos que vários dos salmos foram compostos por diversos personagens: Asafe, Salomão, Moisés (talvez você não acredite), etc. Sem contar com aqueles que são considerados "salmos órfãos", cujos autores não conhecemos. Existe um paralelo do saltério com o Pentateuco: Moisés é o seu autor. Porém, certamente, não foi ele quem escreveu absolutamente tudo. Uma das evidências disto está no fato de que existe, em Gn. 11 (acho que é o verso 26), uma expressão designativa que é utilizada em relação à cidade de Ur. Ela é chamada de "Ur dos Caldeus". Esta expressão não era conhecida nos dias de Moisés (séc. XV a.C.), sendo acrescida posteriormente. Dt. 34 é outro exemplo clássico da autoria não-mosaica de PARTE do Penteteuco. Existem outras considerações que faremos durante o nosso diálogo.

    gbaj

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  6. Observações:
    O texto mencionado acima por mim é Gn. 11.28 (quando digitei o comentário supracitado não dispunha de Bíblia);

    Onde consta "Existe um paralelo do saltério..." leia-se "Existe um paralelo entre o saltério..."

    Obrigado.

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