domingo, 11 de outubro de 2009

Declaração da Doutrina da Expiação Substitutiva e Penal




Na discussão deste conceito, devemos acentuar diversas particularidades


1. A EXPIAÇÃO É OBJETIVA

Que dizer que a expiação influi primordialmente na pessoa por quem é feita. Se um homem age mal e presta satisfação do mal que praticou, esta satisfação visa a influir na pessoa que praticou o mal, e não na parte ofendida. No caso em foco, significa que a expiação foi destinada a propiciar a Deus e reconciliá-lo com o pecador. Esta é, indubitavelmente, a idéia primordial, mas não implica que não podemos falar também da reconciliação do pecador com Deus. A Escritura o fazem mais de um lugar, Rm 5.10; 2 Co 5.19, 20. Deve-se ter em mentem, porém, que isto não é equivalente a dizer que o pecador é expiado, o que significaria que Deus fez emendas ou reparações, que Ele prestou satisfação ao pecador. E mesmo quando dizemos que o pecador foi reconciliado, isto dever ser entendido como algo secundário. O Deus reconciliado justifica o pecador que aceita a reconciliação, e de tal modo opera em seu coração pelo Espírito Santo, que o pecador põe de lado a iníqua alienação de Deus e, assim, participa dos frutos da perfeita expiação de Cristo.

Noutras palavras, o fato de que Cristo reconcilia a Deus com o pecador redunda numa ação reflexa da parte do pecador, em virtude da qual se pode dizer que o pecador se reconcilia com Deus. Desde que a expiação objetiva de Cristo é um fato consumado, e desde que agora é dever dos embaixadores de Cristo induzir os pecadores a aceitar a expiação e a pôr fim à sua hostilidade a Deus, não admira que ao aspecto secundário e subjetivo da reconciliação tenha, como tem, certa proeminência na Escritura. Esta exposição do car’ter objetivo da expiação é colocada em primeira plana porque representa a principal diferença entre os que aceitam a doutrina da expiação para satisfação e os que preferem alguma outra teoria.

Surge aqui a questão sobre se este entendimento da expiação tem o apoio da escritura. Vê-se amplo apoio nela. Devemos notar as seguintes particularidades:

a. O caráter fundamental do sacerdócio aponta claramente nessa direção. Enquanto os profetas representavam Deus entre os homens, os sacerdotes, em sua obra sacrificial e intercessória, representavam os homens na presença de Deus e, portanto, dirigiam-se a Deus. O escritor de Hebreus o expressa deste modo: “Porque todo sumo sacerdote, sendo tomado dentre os homens, é constituído nas cousas concernentes a Deus, a favor dos homens”, 5.1. Esta afirmação contém os seguintes elementos:

(1) O sacerdote é tomado dentre os homens, é membro da raça humana, de maneira que pode representar os homens;

(2) é constituído a favor dos homens, isto é, para agir no interesse dos homens; e

(3) é constituído para representar os homens nas coisas concernentes a Deus, isto é, nas coisas que se dirigem rumo a Deus, que olham para Deus, que acabam em Deus. É isto uma clara indicação do fato de que a obra do sacerdote tem em vista primordialmente a Deus. O que não exclui a idéia de que a obra sacerdotal também tem uma influencia reflexa sobre os homens.

b. A mesma verdade é transmitida pela idéia geral dos sacrifícios.Estes Têm evidentemente, um aspecto objetivo. Mesmo entre os gentios, eles eram apresentados, não aos homens, mas a Deus. Supunha-se que eles produziam efeito em Deus. A idéia escriturística do sacrifício não difere disso, em sua relação objetiva. Os sacrifícios do Velho testamento eram apresentados a Deus primeiramente para expiar o pecado, mas também como expressões de devoção e gratidão. Daí, o sangue tinha que ser levado às expressa presença de Deus. Diz o escritor de Hebreus que as “cousas concernentes a Deus” consistem em “oferecer assim dons como sacrifícios pelos pecados”. Os amigos de Jó foram concitados a apresentar sacrifícios “para que eu”diz o Senhor, “não vos trate segundo a vossa loucura”, Jó 42.8. os sacrifícios serviam de instrumentos para amenizar a ira do Senhor.

c. A palavra hebraica kipper (no piel) expressa a idéia de expiação do pecado pela cobertura do pecado ou do pecador. O sangue do sacrifico é interposto entre Deus e o pecador e, em vista da ira de Deus, Na Septuaginta e no Novo Testamento os termos hilaskom e hilasmos são empregados num sentido conexo. O verbo significa “tornar propicio”, e o substantivo, “apaziguamento” ou “meio de apaziguar”. São termos de caráter objetivo.

No grego clássico muitas vezes ocorrem em construções gramaticais com o acusativo de theos (Deus), embora não haja exemplo disto na Bíblia. No Novo Testamento o correm em construções com o acusativo da coisa referida (hamartias), Hb 2.17, ou com peri e o genitivo da coisa (harmation), 1 Jo 2.2; 4 .10. Interpreta-se melhor a primeira passagem à luz do uso do hebraico kipper; a última pode ser interpretada de modo semelhante, ou com theon como o objeto compreendido. Há tantas passagens que falam da ira de Deus e de Deus estando irado com os pecadores, que estamos plenamente justificados por falar de uma propiciação de Deus, Rm 1.18; Gl 3.10; Ef 2.3; Rm 5.9. Em Rm 5.10 e 11.28 os pecadores são chamados “inimigos de Deus” (echthroi) num sentido passivo, indicando, não que são hostis a Deus, mas que são objetos de desprazer de Deus. Na primeira passagem este sentido é exigido por sua ligação com o versículo anterior; na ultima, pelo fato de que echthroi está em contraste com agapetoi, que significa “os que amam a Deus”, mas, sim, “amados de Deus”.

d. As palavras katalasso e katalage significam “reconciliar” e “reconciliação”. Indicam uma ação pela qual a inimizade e certamente possuem, primeiramente, uma significação objetiva. O ofensor reconcilia, não a si próprio, mas a pessoa ofendida. Isto vem demonstrado claramente em Mt 5.23, 24: “Se, pois, ao trazeres ap altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma cousa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão (o que, neste contexto, só pode significar, reconcilia teu irmão contigo mesmo, o que é objetivo); e, então voltando, faze a tua oferta”.

O irmão que supostamente fizera a ofensa é procurado para que o mal ou a injustiça feita seja retirada. Ele precisa propiciar ou reconciliar consigo o seu irmão, seja qual for a compensação requerida. Em conexão com a obra de Cristo, as palavras que estão sendo consideradas certamente denotam, nalguns casos, a efetuação de uma mudança na relação judicial entre Deus e o pecador pela retirada da demanda judicial. De acordo co 2 Co 5.19, o fato de que Deus reconciliou Consigo o mundo evidencia que Ele não lhe imputa os seus pecados. Isto não mostra nenhuma mudança moral ocorrida no homem, mas, sim o fato de que as exigências da lei estão satisfeitas e que Deus está satisfeito.Em Rm 5.10, 11 o termo “reconciliação” só pode ser entendido num sentido objetivo, pois,

(1) dela se diz que foi efetuada pela morte de Cristo, ao passo que a reconciliação subjetiva é resultado da obra do Espírito; (

2) foi efetuada enquanto ainda éramos inimigos, isto é, enquanto ainda éramos objetos da ira de Deus; e

(3) é descrita no versículo 11 como uma coisa objetiva que recebemos.

e. Os termos lytron e antilytron também são objetivos. Cristo é o Goel, o Libertador, At 20.28; 1 Co 6.20; 7.23. Ele resgata os pecadores das exigências da justiça retributiva de Deus. O preço é pago a Deus por Cristo como representante do pecador. É evidente que a Bíblia nos justifica abundantemente na atribuição que fazemos de um caráter objetivo à expiação.Além disso, estritamente falando, a expiação, no sentido próprio da palavra, é sempre objetiva. Não existe expiação subjetiva. Na expiação é sempre a parte que agiu mal que faz reparações àquele que foi prejudicado pela má ação.


2. É UMA EXPIAÇÃO VICÁRIA

a. sentido da expressão “expiação vicária”. Há diferença entre expiação pessoal e vicária. Nosso interesse se volta particularmente para a diferença entre ambas quanto à expiação de Cristo. Quando o homem caiu e se afastou de Deus, ficou devendo uma reparação a Deus. Mas ele só poderia expiar o seu pecado sofrendo eternamente a penalidade fixada para a transgressão. É o que Deus podia exigir, pela estrita justiça, e teria exigido, se não tivesse agido com amor e compaixão pelo pecador. De fato, porém, Deus designou um substituto na pessoa de Jesus Cristo para tomar o lugar do homem, e este substituto expiou o pecado e obteve eterna redenção para o homem. O dr. Shedd chama a atenção para os seguintes pontos de diferença neste caso:

(1) A expiação pessoal é providenciada pela parte ofensora; a expiação vicária, pela parte ofendida.

(2) A expiação pessoal excluiria o elemento de misericórdia; a expiação vicária representa a mais elevada forma de misericórdia.

(3) A expiação pessoal estaria em ação para sempre e, daí, não poderia redundar em redenção; a expiação vicária leva à reconciliação e a vida eterna.

b. A possibilidade da expiação vicária. Todos quantos defendem uma teoria subjetiva da expiação levantam uma formidável objeção à idéia da expiação vicária. Acham inimaginável que um Deus justo transfira a Sua ira contra ofensores morais para uma parte perfeitamente inocente, e que trate judicialmente o inocente como se fosse culpado. Há, indubitavelmente, uma real dificuldade aqui, especialmente em vista do fato de que isto parece contrário a toda analogia humana. Não podemos concluir da possibilidade da transferência de um débito pecuniário que haja possibilidade de transferência de um débito penal. Se uma pessoa bondosa se oferecer para pagar o débito pecuniário de outrem, o pagamento terá que ser aceito e, ipso facto, o devedor ficará livre de toda obrigação. Mas não é este o caso, quando alguém se oferece para expiar vicariamente a transgressão de outrem.

Para ter valor legal, precisa ser expressamente permitido e autorizado pelo legislador. Com referência à lei, isto se chama relaxação judicial, e, com relação ao pecador, é conhecido como remissão. O juiz não necessita permitir isso, mas poderá fazê-lo; todavia, poderá permiti-lo somente sob certas condições, como (1) que a parte culpada não esteja em condições de suportar a penalidade até o fim, pelo que resulta numa relação justa; (2) que a transferência não invada os direitos e privilégios de terceiros inocentes, nem os leve a sofrer dificuldades e privações; (3) que a pessoa que se dispõe a sofrer a penalidade já não seja devedora à justiça, e não tenha que prestar serviços devidos ao governo; e (4) que a parte culpada mantenha a consciência da sua culpa e do fato de que o substituto estará sofrendo por ela. Em vista disso tudo, poder-se-á entender que a transferência do débito penal é quase, senão inteiramente, impossível entre os homens. No caso de Cristo, porém, totalmente único que é, porquanto obteve uma situação sem paralelo, todas as condições mencionadas foram preenchidas. Não houve injustiça de nenhuma espécie.

c. Provas bíblicas da expiação vicária de Cristo. A Bíblia certamente ensina que os sofrimentos e a morte de Cristo foram vicários, e vicários no sentido estrito da palavra, que Ele tomou o lugar dos pecadores, e que a culpa deles Lhe foi imputada e a punição que mereciam foi transferida para Ele. Não é nada disso que Bushnell quer dizer quando fala do “sacrifício vicário” de Cristo. Para ele, isto significa apenas que Cristo levou sobre Si os nossos pecados “em Seu sentimento”, inseriu-se no mau destino dos pecadores por Sua simpatia, como amigo, e até mesmo se dedicou, e dedicou Sua vida, a um esforço pela restauração da misericórdia; numa palavra, que Ele levou sobre Si os nossos pecados no mesmo sentido em que levou sobre Si as nossas enfermidades”.

Os sofrimentos de Cristo não foram tão somente os sofrimentos que um amigo padece por simpatia, mas, sim, foram os sofrimentos substitutivos do Cordeiro de Deus pelos pecados do mundo. As provas escriturísticas disto podem ser classificadas como segue:

(1) O Velho Testamento nos ensina a considerar como vicários os sacrifícios que eram apresentados sobre o altar. Quando o israelita apresentava um sacrifício ao Senhor, tinha que pôr a mão sobre a cabeça do sacrifício e confessar o seu pecado. Este ato simbolizava a transferência do pecado para a oferta e a tornava apta para expiar o pecado do ofertante, Lv 1.4. Cave e outros consideram esse ato apenas como um símbolo de dedicação. Mas isto não explica a razão pela qual a imposição das mãos habilitava o sacrifício a fazer expiação pelo pecado. Tampouco está em harmonia com o que aprendemos a respeito do significado da imposição das mãos no caso do bode expiatório em Lv 16.20-22.

Após a imposição das mãos, a morte era infligida vicariamente ao animal oferecido em sacrifício. A significação disto é claramente indicada na passagem clássica que se acha em Lv 17.11: “Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas: porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da vida”. Diz o dr. Vos: “O animal sacrificial toma, em sua morte, o lugar da morte que cabia ao ofertante. É pena por pena”. Os sacrifícios assim apresentados eram prefigurações do grande e único sacrifício de Jesus Cristo.

(2) Há várias passagens na Escritura que falam dos nossos pecados sendo lançados sobre Cristo e de Cristo levando sobre Si o pecado ou a iniqüidade, Is 53.6, 12; Jo 1.29; 2 Co 5.21; Gl 3.13; Hb 9.28; 1 Pe 2.24. Com base na Escritura podemos, pois, dizer que os nossos pecados são imputados a Cristo. Não significa que a nossa pecaminosidade foi transferida para Ele – coisa em si mesma completamente impossível – mas, sim, que a culpa do nosso pecado Lhe foi imputada. Diz o dr. A. A. Hodge: “Pode-se considerar o pecado (1) em sua natureza formal, como transgressão da lei, 1 Jo 3.4; ou (2) como qualidade moral inerente ao agente (macula, Mácula), Rm 6.11-13; ou (3) com respeito à sua obrigação legal para com a punição (reatus, condição de réu, culpabilidade). Somente neste último sentido sempre se diz que o pecado de u é lançado sobre ou é por este levado sobre si”.

Estritamente falando, então, a culpa do pecado, como coisa passível de punição, foi imputada a Cristo; e esta só pôde ser transferida porque não era inerente à pessoa do pecador, mas era uma coisa objetiva.

(3) Finalmente, há diversas passagens em que as preposições peri, hyper e anti são empregadas em conexão com a obra realizada por Cristo em favor dos pecadores. A idéia de substituição é menos expressa pela primeira, e mais pela última preposição. Mas, mesmo para a interpretação de hyper e anti, temos que depender grandemente do contexto, pois, embora a primeira signifique realmente “a favor de”, “no interesse de”, pode expressar, e nalguns casos expressa, a idéia de substituição, e embora a última possa significar “em lugar de”, nem sempre tem esse sentido.

É muito interessante notar que, de acordo com Deismann, encontraram-se nas inscrições vários exemplos do uso de hyper significando “como representante de”. Vemos um emprego parecido desta preposição em Filemom 13. Em passagens como Rm 5.6-8; 8.32; Gl 2.20; Hb 2.9, provavelmente significa “em lugar de”, embora também possa ser traduzida por “em favor de”; mas em Gl 13.13; Jo 11.50; 2 Co 5.15, certamente significa “em lugar de”. Diz Robertson que só a violência ao texto poderá evitar esse sentido ali. A preposição anti significa claramente “em lugar de” em Mt 2.22; 5.38; 20.28; Mc 10.45. Segundo Robertson, qualquer outro sentido do termo está fora de questão nessas passagens. A mesma idéia é expressa em 1 Tm 2.6.

d. Objeções à idéia da expiação vicária. Várias objeções são feitas à idéia da expiação vicária.

(1) A substituição nas questões penais é ilegal. Geralmente se admite que, nos casos de uma dívida pecuniária, o pagamento feito por um substituto não é somente permissível, mas deve ser aceito, e cancela definitivamente toda obrigação posterior da parte do devedor original. Contudo, dizem que a dívida penal é tão pessoal que não admite nenhuma transferência como aquela. Mas é mais que evidente que existem outros casos, além dos de natureza pecuniária, em que a lei prevê a substituição. Armour, em sua obra sobre A Expiação e a Lei (Atonement and Law), menciona três tipos de casos assim. O primeiro é o da substituição no caso do serviço militar requerido pelo bem do próprio país.

A respeito do terceiro, diz ele: “mesmo em caso de crise, a lei, como é entendida e ministrada pelos homens de todas as terras, estabelece que a pena pode ser cumprida por um substituto, em todos os casos em que a pena prescrita é tal que um substituto possa cumpri-la coerentemente com as obrigações sob as quais ele já se acha”.

É perfeitamente evidente que a lei reconhece o princípio de substituição, conquanto não seja fácil citar casos em que sofressem as penas impostas a estes. Isto encontra suficiente explicação no fato de que normalmente é impossível encontrar homens que preencham todas as condições expostas no item (b), acima. Mas o fato de que é impossível encontrar homens que preencham essas condições não é prova de que Jesus Cristo não as pôde preencher. Na verdade, ele pôde e o fez, e, portanto, foi um substituo aceitável.

(2) Faz o inocente sofrer pelo mau. É a pura verdade que, de acordo com a doutrina penal substitutiva da expiação, Cristo sofreu como “o justo pelos injustos” (1 Pe 3.18), mas dificilmente se pode impor isto como objeção à doutrina da expiação vicária. Na forma que esta doutrina leva o inocente a sofrer as conseqüências da culpa dos maus e, portanto, é inaceitável, é o mesmo que levantar objeção contra o governo moral de Deus em geral. Na vida real, muitas vezes os inocentes sofrem em resultado da transgressão de outros. Além disso, nesta forma a objeção valeria contra todas as teorias da expiação, assim chamadas, pois elas apresentam os sofrimentos de Cristo como sendo, nalgum sentido, resultado dos pecados da humanidade. Às vezes se diz que um agente moral não pode razoavelmente ser responsabilizado pro nenhum pecado, exceto se o cometer pessoalmente; mas isto é contraditado pelos fatos da vida. Alguém que paga outro para cometer um crime é responsável pelo referido crime; assim se dá com todos os cúmplices de um crime.

(3) Faz de Deus o pai culpado de injustiça. Parece que todas as objeções são realmente variações do mesmo tema. A terceira é virtualmente igual à segunda, colocada numa forma um tanto mais legal. A doutrina da expiação vicária, dizem, envolve, injustiça da parte do pai, no sentido de que Ele simplesmente sacrifica o Filho pelos pecados da humanidade. Esta objeção já foi levantada pro Abelardo, mas ignora vários fatos pertinentes. Não foi o pai, mas o trino Deus que concebeu o plano de redenção. Houve um solene acordo entre as três pessoas da Divindade. E neste plano o Filho se incumbiu voluntariamente de sofrer a pena pelo pecado e de satisfazer as exigências da lei divina. E não somente isso, mas a obra sacrificial de Cristo trouxe também imenso proveito e glória para Cristo como Mediador.

Significou para Ele uma numerosa semente, adoração cheia de amor e um reino glorioso. E, finalmente, esta objeção funciona como um bumerangue, pois volta vingativamente para a cabeça daqueles que, como Abelardo, negam a necessidade de uma expiação objetiva, uma vez que todos eles concordam que o pai enviou o Filho ao mundo para amargo sofrimento e vergonhosa morte que, apesar de benéfica, todavia era desnecessária. Isto sim, teria sido cruel!

(4) Não há aquela união que justificaria uma expiação vicária. O que se diz é que, se um substituto deve remover a culpa de um ofensor, é preciso haver uma real união entre eles que justificasse tal procedimento. Pode-se admitir a necessidade da haver uma união antecedente entre um substituto e aqueles que ele representa, mas a idéia de que essa união deve ser orgânica, como a que os componentes em geral têm em mente, não se pode conceder. De fato, a requerida união deve ser legal, e não orgânica, e foi feita provisão para essa união no plano de redenção. Nas profundezas da eternidade, o Mediador da nova aliança encarregou-se livremente de ser o representante do Seu povo, isto é, daqueles que o pai Lhe deu.

Foi estabelecida uma relação federal, em virtude da qual Ele se tornou o seu Fiador. Esta é a união básica e mais fundamental entre Cristo e os Seus e, com base nisto, formou-se uma união mística, idealmente no conselho de paz, a concretizar-se no curso da história na união orgânica de Cristo e Sua igreja. Portanto, Cristo pode agir como o representante legal dos Seus e, estando em união mística com eles, pode também comunicar-lhes as bênçãos da salvação.

3. INCLUI A OBEDIÊNCIA ATIVA E PASSIVA DE CRISTO

É costume distinguir-se entre a obediência ativa e a obediência passiva de Cristo. Mas, ao fazer-se discriminações entre ambas, deve-se entender distintamente que elas não podem ser separadas. As duas acompanham uma à outra em todos os pontos da vida do Salvador. Há uma constante interpretação de ambas. Uma parte da obediência ativa de Cristo era que Ele se sujeitasse voluntariamente aos sofrimentos e à morte. Ele mesmo diz, referindo-se à Sua vida: “Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou”, Jo 10.18. Por outro lado, também era parte da obediência passiva de Cristo que Ele vivesse em sujeição à lei.

Seu viver de servo constitui um importante elemento dos Seus sofrimentos. A obediência ativa e a obediência passiva de Cristo devem ser consideradas partes complementares de um todo orgânico. Na discussão deste assunto é preciso ter em conta a tríplice relação de Cristo com a lei, a saber, a relação natural, a federal e a penal. O homem revelou-se um fracasso em cada uma delas. Ele não guardou a lei em seus aspectos natural e federal, e agora não está em condições de cumprir a pena, para ser restabelecido no favor de Deus. Embora naturalmente Cristo tenha entrado na primeira relação por Sua encarnação, vicariamente só entrou na segunda e na terceira relações. E é particularmente nestas que está o nosso interesse neste contexto.

a. A obediência ativa de Cristo. Como Mediador, Cristo entrou na relação federal em que se achava Adão em seu estado de integridade, e o fez para merecer a vida eterna para o pecador. Isto constitui a obediência ativa de Cristo, que consiste em tudo que Cristo fez para observar a lei em seu aspecto federal, como condição para obter a vida eterna. A obediência ativa de Cristo foi necessária para tornar aceitável a Deus a Sua obediência passiva, isto é, para fazer Del objeto do beneplácito de Deus.

É somente por causa da obediência ativa de Cristo que os Seus sofrimentos recebem de Deus uma avaliação diferente da que recebem os sofrimentos dos perdidos. Além disso, se Cristo não tivesse prestado obediência ativa, a própria natureza humana de Cristo teria ficado aquém das justas exigências de Deus, e Cristo não teria competência para fazer expiação a favor de outros. E, finalmente, se Cristo tivesse sofrido somente a pena imposta ao homem, os que partilhassem os frutos da Sua Obra seriam deixados exatamente onde Adão estava antes da Queda. Cristo merece pelos pecadores mais do que o perdão de pecados. De acordo com Gl 4.4, 5, por intermédio de Cristo eles ficam livres da lei como condição para a vida, são adotados como filhos de Deus e, como filhos, são também herdeiros da vida eterna, Gl 4.7. Tudo isso é primariamente condicionado pela obediência ativa de Cristo. Por intermédio de Cristo a justiça da fé substitui a da lei, Rm 10.3, 4. Diz-nos Paulo que, pela obra realizada por Cristo, a justiça ou “o preceito da lei” se cumpre em nós, Rm 8.3, 4, e que fomos feitos “justiça de Deus”, 2 Co 5.21.

Segundo Anselmo, a vida de obediência de Cristo não tem sentido redentor, visto

que Ele mesmo a devia a Deus. Somente os sofrimentos do Salvador constituíram uma reivindicação a Deus e desempenharam papel fundamental para a redenção do pecador. Pensando de maneira um tanto parecida, Piscator, os arminianos do século dezessete, Richard Watson, R. N. Davies e outros eruditos arminianos, negam que a obediência ativa de Cristo tenha a significação redentora que lhe atribuímos. Sua negação funda-se principalmente em duas considerações: (

1) Cristo precisava de Sua obediência ativa em Seu próprio favor, como homem. Estando sob a lei, tinha a obrigação de cumpri-la para o Seu próprio bem. Em resposta a isto, pode-se dizer que, apesar de Cristo possuir natureza humana, era, obstante, uma pessoa divina e, como tal, não estava sujeito à lei em seu aspecto federal, à lei como condição da aliança das obras para a vida. Todavia, como o último Adão, Ele tomou o lugar do primeiro. O primeiro Adão estava por natureza debaixo da lei de Deus e observá-la nesta qualidade não lhe dava direito a recompensa. Foi somente quando Deus, por Sua graça, entrou em aliança com ele e lhe prometeu vida pela obediência, que a guarda da lei passou a ser a condição para a obtenção da vida eterna para ele e para os seus descendentes. E quando Cristo entrou voluntariamente na relação federal como o último Adão, naturalmente a guarda da lei adquiriu a mesma significação para Ele e para aqueles que o pai Lhe dera.

(2) Deus exige, ou pode exigir, somente uma de duas coisas do pecador: Ou obediência à lei, ou sujeição à pena; mas não pode exigir as duas coisas. Se a lei for obedecida, a pena não poderá ser infligida; e se a pena for cumprida, nada mais poderá ser exigido. Há, porém, certa confusão aí, confusão que redunda em mal entendido. Esta alternativa, “ou...ou”, era aplicável ao caso de Adão antes da Queda, mas sua aplicação cessou no momento em que ele pecou e, assim, entrou numa relação penal com a lei. Deus continuou a exigir a obediência do homem, mas, em acréscimo a isto, exigiu que ele cumprisse e pena pela transgressão passada.Satisfazer esta dupla exigência era o único meio de obtenção da vida, depois que o pecado entrou no mundo. Se Cristo cumprisse meramente a lei e não cumprisse também a pena, não conseguiria o direito à vida eterna a favor dos pecadores; e se Ele apenas cumprisse a pena, sem satisfazer as exigências originais da lei, deixaria o homem nas condições de Adão antes da Queda, ainda confrontando com a incumbência de obter a vida eterna pela obediência. Contudo, por Sua obediência, Ele conduziu o Seu povo para além daquele ponto e lhe deu direito à vida eterna.

b. A obediência passiva de Cristo. Como Mediador, Cristo entrou também na relação penal com a lei, a fim de cumprir a pena em nosso lugar. Sua obediência passiva consistiu em Seu cumprimento da penalidade do pecado mediante os Seus sofrimentos e morte, cancelando assim o débito de todo o Seu povo. Os sofrimentos de Cristo, já descritos, não Lhe sobrevieram acidentalmente, nem como resultado de circunstancias puramente naturais. Foram lançados judicialmente sobre Ele como o nosso representante e, portanto, foram sofrimentos realmente penais. O valor redentor desses sofrimentos resulta dos seguintes fatos: Foram padecidos por uma pessoa divina que, somente em virtude as Sua divindade, podia sofrer a penalidade até o fim e, assim libertar-se dela.

Em vista do valor infinito da pessoa que se encarregou de pagar o preço e sofrer a maldição, eles satisfizeram essencial e intensivamente a justiça de Deus. Foram sofrimentos estritamente morais, pois Cristo os tomou sobre Si voluntariamente e, ao padece-los, era perfeitamente inocente e santo. A obediência passiva de Cristo sobressai proeminentemente em passagens como as seguintes: Is 53.6; Rm 4.25; 1 Pe 2.24; 3.18; 1 Jo 2.2, enquanto que a Sua obediência ativa é ensinada em passagens como Mt 3.15; 5.17, 18; Jo 15.10; Gl 4.4, 5; Hb 10.7-9, em conexão com as passagens que nos ensinam que Cristo é a nossa justiça, Rm 10.4; 2 Co 5.21; Fp 3.9; e quer ele nos assegurou a vida eterna, a adoção de filhos, e uma herança eterna, Gl 3.13, 14; 4.4, 5; Ef 1.3-12; 5.25-27. os arminianos estão dispostos a admitir que Cristo, por Sua obediência passiva, mereceu para nós o perdão de pecados, mas se recusam a conceder que Ele também mereceu para nós a positiva aceitação da parte de Deus, a adoção de filhos e a vida eterna.



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