sábado, 19 de junho de 2010

A Doutrina da Preterição ou Reprovação

Samuel Falcão

1. Definição de Reprovação

A doutrina da preterição ou reprovação é apresentada na Confissão de Fé nos seguintes termos:

“Segundo o inescrutável conselho da sua própria von­tade, pela qual ele concede ou recusa misericórdia, como lhe apraz, para a glória do seu soberano poder sobre as suas criaturas, o resto dos homens, para lou­vor da sua gloriosa justiça, foi Deus servido não con­templar e ordená-los para a desonra e ira por causa dos seus pecados".[1]

O Sínodo de Dort expressou essa doutrina como segue:

Visto que todos pecaram em Adão e se tornaram culpados da maldição e da morte eterna, Deus não faria dano a ninguém se lhe aprouvesse deixar todo o gênero humano debaixo da maldição e condená-lo por causa do pecado.

A causa ou culpa desta incredulidade, como de todos os outros pecados, não está absolutamente em Deus, e sim no homem. Mas a fé em Jesus Cristo e salvação por meio dele é livre dom de Deus.

Mas, considerando que, no decurso do tempo, Deus concede fé a alguns e não a outros, isto procede de seu decreto eterno. Porque, desde o princípio do mundo Deus conhece todas as suas obras. At.15:18; Ef.1:11. De acordo com esse decreto, Ele graciosa­mente abranda o coração dos eleitos, que de outro modo seriam impenetráveis, E quanto aos não elei­tos, Ele com justiça os deixa em sua própria malícia e dureza. E aqui especialmente nos é revelada a pro­funda, misericordiosa e justa diferença posta entre os homens, todos igualmente perdidos, isto é, o de­creto de eleição e de reprovação, revelado na Pala­vra de Deus. Tal decreto os homens perversos, im­puros e indecisos torcem para sua própria perdição, ao passo que às almas piedosas e religiosas ele propor­ciona conforto indizível.

Aliás, a Santa Escritura nisto principalmente mani­festa e exalta esta graça eterna e livre de nossa elei­ção, a saber, testemunha ainda mais que nem todos são eleitos, mas alguns não o são ou não são contem­plados na eterna eleição de Deus. Os tais Ele, indubi­tavelmente, em seu libérrimo, justíssimo, irrepreensí­vel e imutável beneplácito decretou deixar em sua miséria habitual (na qual por sua própria culpa se precipitaram), não lhes concedendo a fé salvadora e a graça da conversão, mas abandonando-os aos seus próprios caminhos, jazendo eles sob justo juízo, e por fim condená-los e puni-los eternamente, não somente por causa de sua incredulidade, mas também por causa de outros pecados, para manifestação de sua justiça. È este o decreto da reprovação, que de modo algum faz de Deus o autor do pecado (o que é até blasfêmia imaginar), senão que o apresenta como temível, irre­preensível, justo juiz e vingador.[2]

Na “Formula Consensus Helvética” a doutrina em foco vem expressa nestas palavras:

“De tal modo, com efeito, Deus determinou exempli­ficar sua glória que decretou, primeiro criar o ho­mem íntegro, depois permitir a queda, e finalmente apiedar-se de alguns do meio dos caídos, e então ele­gê-los, deixando todavia os outros na massa corrupta, os quais, por fim, entrega à eterna perdição”.[3]

2. O Sentido da Reprovação

A doutrina da reprovação ou preterição, que é uma conse­qüência lógica da doutrina da eleição, sempre enfrentou mui­tos adversários. É uma doutrina bastante desagradável para o sentimentalismo humano. Em nossa experiência pastoral te­mos descoberto que, até aqueles que aceitam a doutrina da elei­ção, relutam em admitir sua conclusão natural, a saber, que a eleição de alguns implica a rejeição dos outros. Mesmo Calvino “estava perfeitamente ciente da seriedade desta doutri­na”. Pode-se ver isto no fato de havê-la chamado de “decretum horribile”. Pensamos, porém, que a dificuldade não está na própria doutrina da reprovação, antes está no problema desconcertante do mal, ou da permissão do pecado. E tal dificul­dade não pesa apenas sobre os calvinistas, mas é partilhada por todas as escolas de teologia. O pecado é um fato incontes­tável. Também não se contesta que Deus o odeia e que sua san­tidade e justiça exigem que os pecadores sejam punidos.

Qual­quer que seja nossa posição com referência à doutrina da re­provação, temos de reconhecer que Deus tem o direito de punir os transgressores de suas leis. Todos os homens são pecado­res, e Deus podia ter decidido condenar todos, sem que, fazen­do assim, fosse absolutamente injusto. “O verdadeiro proble­ma pode ser declarado assim: Deus foi justo em decretar re­provar transgressores de sua santa vontade? Noutras palavras, o mal é digno de eterna separação de Deus?” Se admitimos a jus­tiça de Deus em condenar pecadores, temos de admitir sua jus­tiça em condenar os não eleitos, que são pecadores. Alguns, todavia, perguntarão: “Se Deus elegeu alguns, por que não elegeu todos?” Respondemos com outra pergunta: “Se todos nós somos pecadores, Deus não tinha o direito de rejeitar-nos a todos?” A salvação não é algo que o homem mereça, e que Deus seja obrigado a conceder. Salvação é uma expressão de sua graça, e se é da graça, isto é, se é favor não merecido, Ele tem o direito de salvar a quantos queira. Demais disto, os arminianos não vêem nenhuma dificuldade na rejeição de todos os anjos caídos, para os quais Deus não fez provisão alguma de salvação (2Pe.2:4), ao passo que para os homens Ele fez tal provisão. Podemos ver, pois, que é mais sentimentalismo do que outra coisa, o que nos faz relutantes em aceitar a doutrina da reprovação de alguns enquanto estamos prontos a aceitar, sem nenhuma repugnância, a reprovação de todos os anjos caí­dos, e até glorificamos a Deus por isso.

Como já foi dito, na eleição temos um ato positivo de Deus, pelo qual Ele escolhe, do meio da massa perdida do gênero hu­mano, certo número de pessoas para a salvação, a fim de reve­lar nelas “as superabundantes riquezas de sua graça”. Na re­provação, porém, temos um ato negativo de Deus, pelo qual Ele deixa que o resto da humanidade, em seus pecados, sofra as conseqüências de sua desobediência. Os eleitos serão monu­mentos de sua graça. Os não eleitos serão uma revelação de sua justiça.

Não devemos confundir reprovação, ou melhor, preterição com condenação. Preterição é um ato negativo de Deus, uma omissão, rejeição de alguns pecadores. Condenação, entretanto, é um ato positivo de Deus, pelo qual Ele comina justa punição aos pecadores. É verdade que preterição envolve condenação, mas enquanto aquela é recusa da graça de Deus, esta é aplica­ção das penas de sua justiça. Como disse o Dr. Berkhof:

“(a) Preterição é um ato soberano de Deus, ato de simples vontade sua. Condenação é um ato judicial, que inflige castigo ao pecado. (b) A razão da preterição não é dada a conhecer; não pode ser o pecado, porque todos os homens são igualmente pecadores; a razão da condenação é conhecida, é o pecado, (c) Na preterição o ato divino é permissivo, ou antes há uma inação; na condenação é eficiente e positivo".[4]

3. Prova da Reprovação

Todos os argumentos que provam a eleição, provam igual­mente a reprovação. Por exemplo, a regeneração é um ato so­berano e poderoso de Deus, uma nova criação, espécie de res­surreição, um ato de geração. Somente Deus pode regenerar. Se Ele não regenera a todos, claro que não é seu plano fazê-lo, Ele não decidiu eleger todas as pessoas. Jesus disse, “Nin­guém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o trouxer” (Jo.6:44). Se todos não vêm a Cristo é porque Ele não leva todos a isso. Por que não? Só existe uma resposta: “Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado” (Mat.11:26). Se a fé é uma dádiva de Deus e se todos os homens não a recebem, é claro que Deus decidiu não conceder fé a todos. Jesus disse, quan­do falava aos judeus que O rejeitavam: “Vós não credes, por­que não sois das minhas ovelhas” (Jo.10:26). Jesus não disse, “Vós não sois das minhas ovelhas, porque não credes” (o que igualmente era verdade), mas revelou uma razão mais pro­funda pela qual eles não criam, se bem que tivessem recebido todas as provas necessárias do messiado e deidade de Cristo (vejam-se os vs. 24, 25). Com referência às suas ovelhas, entre­tanto, Ele disse: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, eternamente, e ninguém as arrebatará da minha mão” (vs. 27, 28). Quem são suas ovelhas? São aqueles que o Pai lhe deu. Ele diz no v. 29: “Meu Pai, que mas deu, é maior do que tudo”. No cap. 17 deste mesmo Evangelho, Cristo referiu outra vez aqueles que o Pai lhe dera: “Assim como lhe conferiste auto­ridade sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste” (v. 2). Sete vezes nessa oração intercessória Jesus mencionou o fato de o Pai lhe ter dado aqueles a quem Ele salvou. E foi somente por estes que Ele orou nessa ocasião: “É por eles que eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus” (v. 9). Várias outras passagens podiam ser acrescentadas, que provam que Deus deu a seu Filho um povo especial, tirado ou escolhido “do mundo”. Basta acrescentar mais uma: “Entretanto o firme fundamento de Deus permanece, tendo este selo: O Senhor conhece os que lhe pertencem” (2Tm.2:19). Alguns fracassaram, porém não aqueles que de fato pertenciam ao Senhor (veja-se o v. 18). Como João escreveu: “Eles saíram de nosso meio, entretanto não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse ma­nifesto que nenhum deles é dos nossos” (1Jo.2:19). Se Deus deu a Cristo um povo especial, a quem escolheu “do mundo”, claro é que o resto do mundo não foi contemplado, não foi dado a Cristo, não foi eleito.

O caso das cidades pagãs de Tiro, Sidom e Sodoma, que já mencionamos, constitui outra prova de preterição. Como vimos, Cristo disse que se elas tivessem presenciado seus milagres, “ter-se-iam arrependido” (Mat.11:21-24). Por que não se arrepende­ram? Porque Deus não lhes ofereceu uma oportunidade de ver os milagres de Cristo. Apesar de Deus prever que elas se arre­penderiam, não lhes deu uma oportunidade de se arrependerem. Isto prova, como dissemos, que arrependimento previsto não serve de base para Deus eleger. E se Deus não lhes deu uma oportunidade de conhecer a Cristo e de lhe presenciar os mila­gres, é evidente que foram rejeitadas, não foram contempladas. Entretanto, podemos dizer que Deus é injusto por condenar o povo corrupto de Sodoma? Absolutamente não.

Em Apoc.13:8 lemos: “E adorá-la-ão (isto é, a besta) todos os que habitam sobre a terra, aqueles cujos nomes não foram es­critos no livro da vida do Cordeiro que foi morto, desde a funda­ção do mundo”. Foram omitidos, não foram incluídos, não fo­ram contemplados, seus nomes não foram escritos no livro da vida- Se isto não quer dizer preterição, a linguagem humana não terá outro meio de expressá-la. Em contraste com esses, diz-se aos discípulos de Cristo que se alegrem pelo fato de seus nomes estarem arrolados nos céus (Lc.10:20) e Paulo escreveu a respeito de Clemente e dos demais cooperadores seus que os nomes deles se encontravam “no livro da vida” (Fp.4:3).

“As Escrituras usam expressões por demais dolorosas para descrever a decisão divina a respeito dos não elei­tos. “Não estão arrolados" no livro da vida” (Apoc. 13:8); são “vasos de ira, preparados para a perdição” (Rm.9:22); “antecipadamente pronunciados para esta condenação” (Judas 1:4); “tropeçam na palavra, sendo desobedientes. para o que também foram postos” (1Pe.2:8). De Deus se diz que ama a uns menos do que a outros (Mal.1:2,3). Alguns são chamados “eleição” e outros são chamados “os mais” (Rm.11:7). Uma lei­tura desapaixonada de Romanos capítulos nove a onze, le­vará à certeza de que, seja qual for a crença ou des­crença de quem quer que seja sobre o assunto, a Pala­vra de Deus é enérgica em declarar que alguns são de­signados para receber bênção, e outros para sofrer con­denação. As limitações humanas e um raciocínio errô­neo dificilmente apreciarão com acerto este fato. É evidente que a condenação dos não eleitos acompanha-se de uma devida consideração da indignidade deles”.[5]

Uma prova de que Paulo, nesta famosa passagem de Ro­manos (caps. 9 a 11), fala da eleição de indivíduos para a salva­ção, e não da eleição de nações para serviço e testemunho, está em citar Isaias, dizendo: “Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será sal­vo” (9:27). E outra vez: “Irmãos, a boa vontade do meu coração e a minha súplica a Deus a favor deles é para que sejam salvos” (10:1; vejam-se os vs. 9, 10, 13). Aliás, se ele falasse nestes capítulos de eleição para privilégio e não para salvação, sua referência a “vasos de ira, preparados para a perdição”, aos quais Deus “suportou com muita longanimidade”, e a referência a “vasos de misericórdia, que para glória preparou de ante­mão” (9:22,23), não teriam sentido. “Vasos de ira”, “perdição”; “vasos de misericórdia”, “glória” — tais palavras não aludem a testemunho neste mundo, mas aludem a salvação ou a conde­nação na vida futura.

Quando Paulo pregou o Evangelho em Filipos para um grupo de mulheres “à beira de um rio”, somente Lídia se con­verteu. Por quê? A Bíblia dê a explicação: “Certa mulher cha­mada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura, te­mente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia” (Atos 16:14). Lucas não diz que Deus abriu o coração das outras mulheres, presentes na ocasião, mas somente o coração de Lídia. Todas elas ouviram a chamada geral do Evangelho, contudo foi somente Lídia que recebeu a chamada eficaz. O mesmo acontecera antes em Antioquia da Pisídia, onde Paulo pregou a muitos gentios, certo núme­ro dos quais se converteu, a saber, aqueles que Deus tinha esco­lhido. Pois lemos, “Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (Atos 13:48). Por que todos não creram? Porque Deus não havia destinado todos para a vida eterna — esta é a única conclusão lógica que podemos tirar do texto. Os que creram haviam sido destinados para a vida eterna — temos aí eleição. Os outros, que não creram, não foram destinados para isso — eis aí preterição. E esta experi­ência de Paulo era apenas uma confirmação do que o próprio Cristo dissera: “Porque muitos são chamados, mas poucos es­colhidos” (Mt.22:14). A experiência de Paulo tem sido e ainda é a de todos os pregadores. Todos estes sabem que há muitos que não podem crer, e isto apenas prova o estado pecaminoso desses incrédulos. Até mesmo nós que cremos, também temos nossas dúvidas e precisamos orar constantemente para que Deus sustente e aumente nossa fé. E, orando assim, reconhecemos que, em última análise, nossa fé depende de Deus, do testemunho e operação do seu Espírito. Existe em nós uma espécie de para­doxo a este respeito, de sorte que, como o pai de quem lemos no Evangelho, algumas vezes também clamamos com lágrimas: “Senhor, eu creio; ajuda-me na minha falta de fé” (Mc.9:24). Não devemos esquecer, todavia, que a fé, a qual é dádiva de Deus, não é mera crença na existência do mesmo Deus, visto como esta espécie de fé até os demônios têm. “Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios crêem, e tremem” (Tg.2:19). A fé, dádiva de Deus, é fé salvadora, é fé em Cristo para a salvação. É fé que envolve arrependimento, regeneração e reconciliação, numa palavra, tudo quanto salvação significa.

Com referência a este assunto, disse o Dr. Warfield:

“Os escritores da Bíblia estão muitíssimo longe de obscurecer a doutrina da eleição por causa de coro­lários aparentemente desagradáveis que decorrem da mesma. Pelo contrário, eles expressamente tiram os corolários que tantas vezes têm sido assim denomina­dos e fazem deles uma parte do seu ensino explícito. A doutrina deles, sobre a eleição — dizem-no-lo fran­camente — envolve certamente a doutrina que lhe corresponde, a da preterição. O próprio termo adota­do no Novo Testamento para expressá-la — Eklegomai (Ef.1:4)... encerra uma declaração do fato de que na eleição deles outros deixam de ser contemplados e fi­cam privados do dom da salvação. A apresentação in­tegral da doutrina é de tal modo feita que afirma, im­plícita ou abertamente, na sua própria enunciação, a remoção dos eleitos por pura graça de Deus, não ape­nas de um estado de condenação, mas do meio da so­ciedade dos condenados — sobre a qual a graça divina não tem nenhum efeito salvador e que por isso é deixada, sem esperança, nos seus pecados. E a repro­vação justa e positiva dos impenitentes, por causa de seus pecados, é ensinada repetida e explicitamente em vivo contraste com a salvação gratuita dos eleitos, a despeito dos pecados destes”.[6]

Lemos também na Bíblia acerca de certos indivíduos, cujo coração Deus endureceu. Isto não quer dizer que Deus fosse a causa eficiente do endurecimento deles, mas que os entregou à perversão dos seus corações. Deus não abrandou aqueles cora­ções, recusando conceder-lhes sua graça todo-poderosa. Foi o caso dos gentios, de quem Paulo disse, “Deus os entregou a uma disposição mental reprovável” (Rm.1:28). Veja-se Dt.2:30 e Js.11:20. Lemos dos filhos de Eli que “não ouviram a voz de seu pai, porque o Senhor os queria matar” (1Sm.2:25). A ati­tude de Deus foi de todo negativa no caso deles. Decidiu não secundar a advertência do pai com a operação eficaz de sua graça. E Deus tinha o direito de proceder assim, visto como graça é favor não merecido. O caso clássico desse endureci­mento de coração é Faraó, de quem lemos: “Eu lhe endurecerei o coração, para que não deixe ir o povo” (Ex.4:21; veja-se 9:12; 10:20, 27; 11:10; 14:4,8). Note-se no entanto que também está escrito que Faraó endureceu o seu próprio coração (Ex. 8:15, 32; 9:34). Que fez Deus para endurecer o coração de Faraó? Leia-se a história, como vem narrada no livro de Êxodo, e se verá que Deus lhe endureceu o coração, apenas sendo miseri­cordioso para com ele. Cada vez que sobrevinha uma praga, Faraó recorria a Deus, mediante Moisés, e chegava a confessar “Pequei” (Ex.9:27).

Mas toda vez que Deus, em sua misericórdia, fazia cessar uma praga, Faraó endurecia o seu coração. “Cha­mou Faraó a Moisés e a Arão, e lhes disse: Rogai ao Senhor que tire as rãs de mim e do meu povo” (Ex.8:8). “E Moisés clamou ao Senhor por causa das rãs, conforme combinara com Faraó. E o Senhor fez conforme a palavra de Moisés; morreram as rãs nas casas, nos pátios e nos campos... Vendo, porém, Faraó que havia alívio, continuou de coração endurecido, e não os ouviu, como o Senhor tinha dito” (Ex. 8:12-15). E ainda: “Respondeu-lhe Moisés: Eis que saio da tua presença, e orarei ao Senhor; amanhã estes enxames de moscas se retirarão de Faraó, dos seus oficiais, e do seu povo... Então saiu Moisés da presença de Faraó, e orou ao Senhor. E fez o Senhor conforme a pala­vra de Moisés, e os enxames de moscas se retiraram de Faraó... Mas ainda esta vez endureceu Faraó o coração e não deixou ir o povo” (Ex 8:29-32). “Então Faraó mandou chamar a Moisés e a Arão, e lhes disse: Esta vez pequei; o Senhor é justo, porém eu e o meu povo somos ímpios. Orai ao Senhor, pois já bastam estes grandes trovões e a chuva de pedras... Saiu, pois, Moisés da presença de Faraó e da cidade, e estendeu as mãos ao Se­nhor: cessaram os trovões e a chuva de pedras, e não caiu mais chuva sobre a terra. Tendo visto Faraó que cessaram as chuvas, as pedras e os trovões, tornou a pecar, e endureceu o seu co­ração, ele e os seus oficiais” (Ex. 9:27, 28, 33, 34).

Quando sofria o castigo de Deus, Faraó abrandava o cora­ção e pedia a Moisés que rogasse em seu favor. Mas toda vez que Deus atendia à oração de Moisés e fazia cessar a praga, Fa­raó endurecia o coração. Deus conhecia o coração de Faraó e sabia que ele se obstinaria se as pragas cessassem. E assim, sendo misericordioso para com ele, retirando o castigo, execu­tava o seu plano, endurecendo o coração de Faraó, de modo a poder revelar nele o seu poder. “Mas deveras para isso te hei mantido, a fim de mostrar-te o meu poder, e para que seja o meu nome anunciado em toda a terra” (Ex. 9:16; veja-se Rm.9:17). No caso de Faraó temos a ilustração do ditado: “O raio de sol, que amolece a cera, endurece o barro”.

Até mesmo Godet, que revela tendências arminianas, re­conhece o direito que Deus tem de dispensar ou não dispensar sua graça (Rm.9:16). Diz ele:

“Havendo dado um exemplo da liberdade com que Deus dispensa graça, Paulo exemplifica o modo pelo qual Ele endurece. Esta exemplificação é escolhida da maneira mais apropriada, porque as duas persona­gens trazidas em cena são, na história bíblica, como dois complementos naturais um do outro A conexão lógica expressa pela conjunção porque é esta: nada há estranhável em a Escritura atribuir a Deus o di­reito de dispensar graça, uma vez que Lhe atribui o di­reito ainda mais incompreensível de condenar a um estado de endurecimento. Cada um destes direitos, com efeito, faz supor o outro. O Deus que não tivesse um, não teria o outro”.[7]

Ele também reconhece que a providência de Deus criou as circunstâncias que levaram ao endurecimento do coração de Faraó, de modo a Deus poder cumprir nele o propósito que ti­nha em vista. Diz ele:

“Pensamos, de fato, que devemos aqui aplicar o sen­tido de levantar em toda a sua generalidade. “Fiz que aparecesses neste tempo, neste lugar, nesta posição” (Theoph., Beza, Calv., Beng., Olsh., Ruck., Thol., Philip., Beysch). O ponto em questão não é a perversa disposição que anima Faraó, e sim toda a situação em que ele se encontra providencialmente colocado. Deus podia ter feito Faraó nascer num tugúrio, onde sua orgulhosa obstinação fosse exibida com não menos pertinácia, mas sem qualquer conseqüência histórica notável. Por outro lado, Ele podia ter colocado no trono do Egito, daquela vez, um homem fraco, indolente, que cedesse no primeiro encontro. Que teria acontecido? Faraó, em sua posição obscura, não teria sido menos arrogante e perverso; mas Israel teria saí­do do Egito sem barulho. Nada de pragas, uma após ou­tra, nada de travessia miraculosa do Mar Vermelho, nada de exército egípcio destruído; nada daquilo tudo que impressionou tão profundamente a consciência dos israelitas, e que se tornou para o povo eleito o fundamento inamovível de sua relação com Jeová”.[8]

Há um dito em português que ilustra o que aconteceu com Faraó: “Queres conhecer o vilão? Põe-lhe a vara na mão”. Exis­tem muitos Faraós potenciais no mundo. Falta-lhes apenas a oportunidade de mostrar sua verdadeira natureza. Se Deus cria essa oportunidade, de modo a poderem revelar o que lhes está no coração, não merece censura pela perversidade dessa gente, mas ao mesmo tempo Ele pode usar essa perversidade para a realização do seu propósito. Tal foi o caso de Faraó, Judas, Pilatos, etc.

“fim todos os reprovados há uma cegueira e endurecimento pertinaz de coração. E quando de alguns deles, como Faraó, se diz que Deus os endureceu, podemos ficar certos que em si mesmos já são dignos de ser en­tregues a Satanás. Os corações dos ímpios nunca, na­turalmente, são endurecidos por influência direta de Deus, — Ele simplesmente permite que alguns cedam aos maus impulsos já existentes em seus corações, de modo que, como resultado da própria escolha deles, tornam-se cada vez mais calejados e obstinados”.[9]

4. Justiça da Reprovação

A primeira e natural impressão que temos quando conside­ramos a doutrina da eleição com sua conseqüência lógica, isto é, a preterição, é que há nela injustiça. O homem raciocina as­sim: “Se Deus escolheu uma parte do gênero humano para a salvação, e deixou o resto para ser condenado, Ele foi injusto para com aqueles que não escolheu”. Paulo sabia que seria esta a objeção natural que o coração humano levantaria contra sua doutrina. “Que diremos, pois? Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum. Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia, e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão... Tu, porém, me dirás: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade?” (Rm.9:14, 15, 19). Quando, porém, contemplamos o gênero humano em sua verdadeira condição espiritual, esta objeção desa­parece. A Bíblia apresenta o gênero humano já debaixo de condenação, de modo que, quando alguém rejeita a Cristo, não vai ser condenado, mas “já está condenado” (João 3:18); ou em outras palavras “a ira de Deus sobre ele permanece” (v.36). Deus seria perfeitamente justo se condenasse a todos. É isto o que Paulo prova em Romanos 3, onde lemos, “Mas, se a nossa injustiça traz a lume a justiça de Deus, que diremos? Porventura será Deus injusto por aplicar a sua ira? (Falo como homem). Certo que não. Do contrario, como julgará Deus o mundo?” (Rm.3:5,6). E outra vez, “Que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus" (Rm.3:19).

“A defesa da doutrina da Reprovação repousa na pre­cedente doutrina do Pecado Original e da Total Ina­bilidade. Este decreto encontra toda a raça caída. Ninguém tem absolutamente direito à graça de Deus. Mas ao invés de deixar todos entregues ao seu justo castigo, Deus concede gratuitamente imerecida feli­cidade a uma parte do gênero humano, — um ato de pura misericórdia e graça contra o qual ninguém pode apresentar objeção — enquanto a outra parte é ape­nas omitida ou não contemplada. Nenhum castigo ime­recido é infligido a esta última parte. Daí ninguém ter qualquer direito de opor objeção a esta parte do decreto. Se este tratasse de pessoas inocentes, seria injusto cominar penas a uma parte; mas visto que trata de pessoas num particular estado, que é de culpa e pecado, não é injusto... O homem, sendo cul­pado, perdeu seus direitos e cai debaixo da vontade de Deus. A soberania absoluta de Deus manifesta-se, e quando Ele mostra misericórdia em alguns casos, não podemos reclamar contra Sua justiça nos outros casos, a menos que ponhamos em dúvida Seu governo sobre o universo. Visto por este prisma, o decreto da Predestinação encontra todo o gênero humano per­dido e deixa que somente uma parte do mesmo conti­nue assim. Quando todos, previamente, mereciam cas­tigo não foi injusto alguns serem previamente entre­gues ao mesmo castigo; do contrário, a execução de uma sentença justa seria injusta”.[10]

Estas considerações aclaram o sentido das palavras de Paulo em Rm.9:21, “Não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro para desonra?” A massa ou barro, de que Paulo fala aqui é o gênero humano em pecado. Prova-se isto pelo fato de falar ele em “va­sos de misericórdia” e “vasos de ira”; tanto misericórdia como ira pressupõem pecado. Se Deus agisse segundo as exigências da justiça, Ele faria somente vasos para desonra. Mas, dessa massa de pecadores, Ele faz alguns vasos nos quais revela Sua misericórdia, sem ser injusto para com o resto, deixado por Ele na sua condição anterior. Suponha-se que alguém decida tirar de um monte de lixo uma porção de que faz um vaso para seu uso. Acaso é injusto para com o resto do lixo, que deixa no monte? Ou, se um soberano decide perdoar um criminoso, den­tre outros criminosos, todos já condenados justamente à morte, de acordo com a lei, acaso faz injustiça aos outros criminosos, que não perdoa? Absolutamente não. É misericordioso para com aquele a quem perdoa, sem ser injusto para com os outros que deixa na prisão para receberem a justa paga dos seus crimes.

“Quando os arminianos dizem que a fé e as obras previstas constituem o fundamento da eleição, nós dis­cordamos. Quando, porém, dizem que a incredulidade e a desobediência previstas constituem o funda­mento da reprovação, assentimos prontamente. Uma pessoa não é salva na base de suas virtudes, mas é con­denada na base de seus pecados. Como bons calvinistas, insistimos que enquanto algumas pessoas são sal­vas, de sua incredulidade e desobediência, nas quais todos estão implicados, e outras pessoas não são salvas, a pecaminosidade do pecador é que de fato constitui a base de sua reprovação. A eleição e a reprovação procedem de fundamentos diferentes; um é a graça de Deus; o outro é o pecado do homem. É uma caricatura do Calvinismo a teoria de que pelo fato de Deus escolher salvar uma pessoa independentemente do caráter ou merecimentos dela, Ele escolhe condenar pessoas a despeito do caráter ou merecimentos das mesmas”.[11]

A respeito deste assunto disse Agostinho:

“A condenação cabe aos ímpios por uma questão de dívida, justiça, e merecimento, ao passo que a graça, concedida aos que são libertos, é livre e não merecida, de modo que o pecador condenado não pode alegar que não merece esse castigo, nem o piedoso pode ga­bar-se ou vangloriar-se, como se fora digno de sua re­compensa. Assim, pois, em tudo isso não há favori­tismo ou acepção de pessoas. Os que são condenados, bem como os que são libertados, constituíam original­mente uma e a mesma massa, igualmente infeccionada de pecado e sujeita a vingança. Daí vem que os justificados podem aprender, à avista da condenação dos demais, que seria esse o seu próprio castigo, se a graça de Deus não tivesse corrido em seu socorro".[12]

5. Razão da Reprovação

Deus não dá a conhecer as razões pelas quais decidiu re­provar uma parte do gênero humano, não a contemplando, para que pereça em seus pecados. Escrevendo sobre este assunto, Paulo exclamou; “ó profundidade da riqueza, tanto da sabedo­ria, como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis os seus caminhos!” etc. (Rm.11:33-36). Mas àqueles que dizem ser injusto Deus fazer essa diferença entre vasos da mesma massa (para empregar a fi­gura de Paulo), respondemos com Calvino:

“Quem sois vós, miseráveis mortais, para proferirdes acusação contra Deus, pelo fato de não conciliar a gran­deza de suas obras com a vossa ignorância? como se, por estarem vedadas ao conhecimento carnal, fossem necessariamente falsas. Da imensidade dos juízos de Deus tendes as mais claras evidências. Sabeis que são chamados “um grande abismo”. Ora, examinai vosso intelecto acanhado, se pode compreender os decretos ocultos de Deus. Que vantagem ou satisfação ganhais, afundando pelas vossas pesquisas loucas num abismo que a própria razão proclama que vos será fatal? Por que pelo menos não sois refreados por algum temor do que se contém na história de Jó e nos livros dos profetas a respeito da sabedoria inconcebível e poder terrível de Deus? Se vosso espírito se perturba, acei­tai sem relutância o conselho de Agostinho: “Você, que é homem, espera uma resposta de mim, que também sou homem. Por conseguinte nós ambos ouçamo-lo, a ele que diz, ó homem, quem és tu? Uma ignorân­cia fiel é melhor do que um conhecimento presunçoso. Procurai méritos; achareis nada menos do que casti­gos, ó profundidade! Pedro nega; o ladrão crê. Ó pro­fundidade! Procurais uma razão? Estremecerei ante o abismo. Arrazoais? Ficarei admirado. Discutis? Eu crerei. Vejo o abismo, não lhe alcanço o ponto mais baixo. Paulo sossegou, porque se encheu de admira­ção. Ele chama insondáveis os juízos de Deus, e vós vos chegais para sondá-los? Diz que os caminhos de Deus são inescrutáveis, e vós vindes investigá-los”?”.[13]

É verdade que não sabemos por que Deus escolheu “A” e não escolheu “B” se bem que Ele deve ter tido boa e justa razão, que não revelou, mas que um dia compreenderemos. Temos, no entanto, pelo menos uma idéia vaga da razão pela qual existe isso que se chama eleição e preterição, a saber, a necessidade que Deus tem de dar a conhecer Sua misericórdia e Sua jus­tiça. Se todos os membros da raça humana se salvassem, não saberíamos apreciar o valor de nossa salvação. Pelo contraste de nossa glória e bem-aventurança com a vergonha e a condenação dos perdidos, compreenderemos melhor a grandeza de nossa salvação. E sabendo que merecíamos a mesma condenação dos outros, entenderemos mais adequadamente a maravilhosa miseri­córdia e graça de Deus para conosco, e nossos corações transbor­darão de gratidão e louvor. Além disso, no julgamento dos con­denados veremos a magnitude da santidade e justiça de Deus e como Ele odeia intensamente o pecado. E assim, a condenação deles redundará no louvor da justiça de Deus, enquanto a salvação dos eleitos resultará no louvor de Sua graça.

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Fonte: Escolhidos em Cristo – O Que de Fato a Bíblia Ensina Sobre a Predestinação, Samuel Falcão, Ed. Cultura Cristã, 1997, pág. 157-174.

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Notas:

[1] Confissão de Fé, Cap. III, nº 7.

[2] Judgment of the Synod of Dort, apud Girardeau, op. cit., pp. 164, 165

[3] Formula Consensus Helvética, apud Girardeau, op. cit., p.166.

[4] Louis Berkhof, op. cit., p. 100

[5] L. S. Chafer. Bibliotheca Sacra, V. 96, pp. 268, 269.

[6] B. B. Warfield, op. cit., p.64.

[7] F. Godet. Epistle to the Romans, Chapter 9:17,18.

[8] F. Godet. Op. Cit

[9] Loraine Boettner, op. cit., p.112

[10] Loraine Boettner, op. cit., p.112, 114

[11] David S. Clark, op. cit. pp. 219, 220

[12] Agostinho, apud L. Boettner, op. cit., p. 269

[13] João Calvino, op. cit., Livro III, Cap. XXIII, § 5.



Extraído do site: http://www.eleitosdedeus.org/reprovacao/doutrina-da-pretericao-ou-reprovacao-samuel-falcao.html#ixzz0rG2i5ZEY
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Um comentário:

  1. Anderson o blog ficou muito bom não é porque eu sou do blog mais nosso blog estar entre os melhore, em estilo, e imagem visual, sem fala do conteúdo temos em media quase 1000 pessoa entrando no blog ao mês. valeu

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