Introdução
A crença em Deus é tema de discussão desde os tempos mais antigos, remete aos antigos debates gregos, e é central para a filosofia da religião. Neste trabalho tratarei da corrente filosófica de tradição analítica que discute a racionalidade da crença em Deus. O trabalho está divido em quatro momentos, primeiramente farei a exposição das objeções mais importantes contra a racionalidade da crença em Deus, que são objeções fundacionalistas, tanto medieval quanto moderna. Depois anunciarei o colapso do fundacionalismo clássico com a argumentação de Plantinga. Num terceiro momento farei uma breve exposição da objeção reformada à teologia natural. E por fim, darei os argumentos para a basicalidade da crença em Deus. Devo ainda afirmar que grande parte do trabalho foi retirada do artigo de Alvin Plantinga “Religious Belif as ‘Properly Basic’” publicado no “Faith and Rationality” em 1983.
A objeção a crença em Deus parte da exigência que o teísta deva dar provas suficientes para a sua crença, e caso não consiga, deve ser considerada tal crença como irracional. Neste caminho andou Bertrand Russell, que afirmou não haver evidencias suficientes para crença em Deus[1], e mais recentemente Antony Flew[2], com a defesa da presunção do ateísmo, que além de argumentar não haver provas suficientes para crença em Deus, devemos permanecer ateus até que seja dada boa argumentação a favor da crença em Deus, portanto, o ônus da prova é sempre do teísta.
Plantinga resume a objeção à crença em Deus em duas premissas:
(1) Não é racional nem razoável aceitar a crença teísta na ausência de provas suficientes ou razões.
(2) Não temos qualquer prova ou, de qualquer modo, nenhuma prova suficiente em relação à premissa de que Deus existe.[3]
Portanto, não havendo provas suficientes da crença em Deus, não devemos colocar em suspenso, a atitude correta é a descrença. Por conseguinte, mediante as duas possibilidades:
(3) Deus existe
(4) Deus não existe
Uma vez que não temos provas suficientes para (3) “Deus existe”, devemos negá-la e aceitar a (4) “Deus não existe”. No entanto, o mesmo não acontece para com (4), pois não havendo provas suficientes para (4) devemos então assumir (3) “Deus existe”? Parece-nos então, um pouco arbitrária a presunção ateísta, voltemos a analisar as premissas (1) e (2). Plantinga prefere não se deter na premissa (2), mesmo observando ser uma afirmação forte, mas para os fins da sua argumentação não é necessário dar atenção a esta premissa. Já na (1) Plantinga se detêm avaliando e questionando o porquê da necessidade de prova para a crença teísta, e quais os tipos de provas exigidas para a racionalidade. Aqui há uma normatividade: exigências para que uma crença seja racional, assim, as pessoas têm obrigações, responsabilidades e deveres para com suas crenças. Alguém que acredita que “Heitor está acima do peso” tem responsabilidade sobre sua crença, e portanto, deve ter provas para acreditá-la, caso contrário, não terá razão alguma para chamá-lo de gordo. Sobre isto Plantinga afirma:
Com respeito a determinados tipos de proposições talvez eu tenha o dever de não acreditar nelas a não ser que tenha uma prova. Talvez eu tenha um dever de não aceitar a negação de uma proposição aparentemente evidente por si só a não ser que veja que ela está em conflito com outras proposições que também parecem evidentes. Talvez eu tenha o dever de aceitar uma proposição tal como vejo uma árvore, em determinadas condições que são difíceis de explicar em pormenor mas que, pelo menos, incluem a minha ponderação visual juntamente com o fato de eu ter um determinado tipo característico de experiência visual juntamente com o fato de não ter qualquer razão para pensar que o meu aparelho de percepção não está a funcionar bem.
Estas obrigações são chamadas de prima facie, pois podem ser ultrapassadas por outras obrigações. Se Heitor decidir pular em cima de mim, eu não preciso provar que ele está com excesso de peso para temer por minha vida. Ou ainda, eu tenho obrigação prima facie de acreditar naquilo que me aparece evidente, por outro lado, numa obrigação ultima facie, pensando bem, ou entre uma coisa e outra, pode ser que meus estados mentais não estejam apropriadamente funcionando, o que acarretaria numa evidência falsa para uma crença, assim, eu deixaria de ter obrigação de acreditar naquela crença. Portanto, segundo os que objetam a crença teísta, afirmam ter ela uma obrigação prima facie de prover evidencias para a crença. Mas por quê!? Por que o teísta tem a obrigação de fornecer evidencias para sua crença? Por que esta crença não poderia ser básica? Por que a crença teísta tem esta obrigação e outras crenças não, afinal, é preciso ter crenças básicas para evitar o retrocesso ao infinito de crenças.
Colapso do Fundacionalismo Clássico
A resposta do fundacionalista a estas perguntas é que para uma crença ser racional ela precisa ou ser básica ou estar fundamentada numa cadeia de proposições que alcancem uma crença básica. E afirmam que (5) uma proposição p é básica para pessoa S se e somente se, p for auto-evidente para S, ou incorrigível para S, ou evidente para os sentidos de S. Portanto, a crença em Deus é irracional, pois nem é básica e nem é derivada de uma cadeia de proposições que alcancem uma crença básica. Para Plantinga esta crença (5) não está fundamentada em nenhuma cadeia de crenças que chegue a uma crença básica, e nem, no entanto, preenchem as diretrizes para ser uma crença básica, assim, a resposta fundacionalista é contraditória, e não resolve o problema.
A Objeção Reformada à Teologia Natural
Poderíamos pensar por um instante sobre as provas da existência de Deus, assim como foram concebidas pelos escolásticos. E poderíamos mesmo acreditar que tais provas, são suficientes para provar a existência em Deus e, portanto, justificar a racionalidade da crença teísta. Porém, alguns cristãos não estão satisfeitos com estas provas, a tradição reformada, principalmente de linha calvinista, tem questionado a validade destas argumentações para justificação a crença em Deus. Por causa do tempo, cito apenas Calvino como precursor desta tradição:
Que existe na mente humana, e na verdade por disposição natural, certo senso da divindade, consideramos como além de qualquer dúvida. Ora, para que ninguém se refugiasse no pretexto de ignorância, Deus mesmo infundiu em todos certa noção de sua divina realidade, da qual, renovando constantemente a lembrança, de quando em quando instila novas gotas, de sorte que, como todos à uma reconhecem que Deus existe e é seu Criador, são por seu próprio testemunho condenados, já que não só não lhe rendem o culto devido, mas ainda não consagram a vida a sua vontade.[4]
Calvino acredita que a crença em Deus é algo universal, todos indistintamente têm o sensus divinitatis, que é suprimido pelo pecado e faz a mente distorcer esta crença, levando a descrença. Portanto, para Calvino a crença em Deus não precisa de provas, ela é propriamente básica, rejeita assim, a teologia natural, pois, para a tradição reformada a crença em Deus não depende do sucesso de alguma argumentação probabilística, ou nas incertezas e correções das provas clássicas. A epistemologia reformada afirma que o teísta está completamente em seu direito epistêmico de acreditar em Deus, mesmo que não tenha um bom argumento teísta (dedutivo ou indutivo). Rejeitam também o fundacionalismo clássico, pois, apesar de acreditarem haver crenças básicas, e estas não dependentes de outras crenças, não acreditam que uma crença seja básica apenas se for auto-evidente, incorrigível e evidente para os sentidos, pois, estão convencidos que a crença em Deus também é básica.
A Crença em Deus é realmente Básica?
Se a crença em Deus é propriamente básica, significa dizer que qualquer coisa pode ser uma crença básica? Respondemos que não. Segundo Plantinga, determinadas crenças básicas são propriamente básicas em determinadas circunstâncias, e estas mesmas crenças podem não ser básicas em outras circunstâncias. A crença, por exemplo, de que vejo os cabelos longos de João é básica numa determinada circunstância, a saber, há um ano, no entanto, olhando para os seus cabelos hoje, sei que não são mais longos e, portanto, minha crença básica a respeito dos cabelos longos de João não é verdadeira nestas circunstâncias. Rejeitar os critérios fundacionalista clássico não significa dizer que devemos aceitar tudo. Ao afirmar que a crença em Deus é básica, não queremos dizer, que não há fundamento para ela. A semelhança da crença da memória, das coisas perceptíveis e a crença em outras mentes, a crença em Deus é básica, mas tem fundamento. Plantinga exemplifica o que seria um fundamento para uma crença básica:
(6) Vejo uma árvore
(7) Tomei o café da manhã esta manhã
(8) Aquela pessoa sofre
Ao ver uma árvore eu tenho o direito epistêmico de acreditar que estou vendo uma árvore. E que realmente existe uma árvore na minha frente. Quando lembro que tomei café da manhã tenho fundamentação para minha crença básica de que o mundo não foi criado há cinco minutos. E quando vejo alguém sofrendo tenho fundamentação para acreditar que aquela pessoa tem uma mente. “Portanto, uma crença é justificada para uma pessoa, em determinado tempo se (a) não violar qualquer obrigação epistemológica e estiver no âmbito dos seus direitos epistemológicos em aceitá-la e (b) a sua estrutura mental não estiver defeituosa da sua aceitação. Portanto (...) na condição C, S está justificado em tomar p como básico.” [5] Isto também pode ser dito para a crença em Deus, em determinadas circunstâncias a crença em Deus é básica. Algumas circunstâncias seriam: culpa, gratidão, perigo, uma sensação da presença de Deus, um sentimento de que Ele fala, etc. Assim, crenças como:
(9) Deus está falando comigo,
(10) Deus criou tudo isto,
(11) Deus não aprova aquilo que fiz,
(12) Deus perdoa-me,
(13) Temos de agradecer e louvar a Deus.
São proposições básicas nas circunstâncias certas. Portanto, não é exato dizer que a proposição existe uma pessoa que é Deus seja apropriadamente básica. De maneira exata, básico são as proposições de (9) a (13). Isto também acontece com as crenças em objetos perceptíveis, de outras mentes e do passado:
(14) Existem árvores,
(15) Existem outras mentes,
E
(16) O mundo existe há mais de cinco minutos
Não são, de fato, apropriadamente básicos; são realmente básicas proposições como:
(17) Vejo uma árvore
(18) Aquela pessoa está contente
(19) Tomei o café da manhã há mais de uma hora.
Conclusão
Concluímos afirmando que é perfeitamente racional acreditar em Deus, e esta crença não carece de prova evidencial, pois é uma crença apropriadamente básica. O teísta tem o direito epistêmico de acreditar em Deus sem que lhe seja exigido nenhuma prova. Por fim, lembramos que o defensor da presunção ateísta, Antony Flew, em 2004 anunciou que deixava de ser ateu para acreditar em Deus, este filósofo morreu em Abril deste ano.
[1] Sua argumentação contra a crença em Deus pode ser encontrada principalmente em RUSSELL, Bertrand. Por que não sou cristão. Porto Alegre: L&PM, 2008.
[3] PLANTINGA, Alvin. A Crença Religiosa como “Realmente Básica”. In: TALIAFERRO, Charles; GRIFFITHS, Paul. Filosofia das Religiões: Uma Antologia. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. PP 279.
[4] CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. Vol I Cap III. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, pp 53
[5] PLANTINGA, Alvin. A Crença Religiosa como “Realmente Básica”. In: TALIAFERRO, Charles; GRIFFITHS, Paul. Filosofia das Religiões: Uma Antologia. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. PP 309-10.
Não é curioso saber que o maior cientista de todos os tempos, Albert Einstein, não era ateu?mais a maioria dos cientistas mais famosos são ateus e não religiosos ?
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